José Ozildo dos Santos
Figura da maior projeção da literatura paraibana, ALLYRIO MEIRA WANDERLEY nasceu aos 22 de outubro de 1906, na fazenda Campo Comprido, termo e comarca do município de Patos, no sertão paraibano. Foram seus pais Francisco Olídio Monteiro Wanderley e Inácia Maria Meira Wanderley. Em 1912, aos cinco anos de idade, vencida a ‘Carta de ABC’, foi matriculado no ‘Colégio Leão XIII’, fundado e dirigido na cidade de Patos, pelo talentoso padre José Viana. Naquele estabelecimento de ensino, fez seus primeiros estudos. E, em fevereiro de 1919, transferiu-se para a capital paraibana, onde matriculou-se como interno do ‘Colégio Diocesano Pio X’. Em agosto daquele mesmo ano, mal tinha vencido a primeira etapa do ano letivo, adoeceu de uma infecção intestinal e teve que retornar ao lar paterno, onde esteve preso ao leito, por quatro meses. Com a saúde restabelecida, foi enviado para o Recife. Naquela capital, concluiu o secundário no ‘Colégio Salesiano’. Em junho de 1924, deixou o Recife com destino à capital paulista tendo em mente prosseguir com os estudos e trabalhar. Entretanto, em São Paulo , não encontrou o esperado. Os empregos que conseguiu, foram temporários. E, desempregado, as dificuldades foram aumentando. A lembrança dessa fase difícil de sua vida seria transportada para um de seus romances - ‘Bolsos Vazios’ - que, sem dúvidas, são suas próprias memórias. No início da década de 1930, passou a trabalhar como tradutor para jornais e editoras, de São Paulo. Foi nesse período que traduziu para o português, vários autores russos consagrados, a exemplo de Leon Tolstoi (‘Khadji-Murat’ e ‘Padre Sérgio’), Dostoievski (‘O Jogador’) e Leonid Andreief (‘Judas Iscariotes’ e ‘Os Sete Enforcados’). Jornalista da melhor escol, em 1931, passou a escrever para as páginas do jornal ‘A Razão’, publicado na capital paulista. Seguidamente, ali, atuou no ‘Correio de São Paulo’, ‘Correio Paulistano’, ‘O Dia’ (1933), ‘A Platéia’ e ‘A Gazeta’. Era, pois, um jornalista de sucesso, quando estreou no mundo das letras com o romance ‘Sol Criminoso’, publicado em 1931. O referido livro, bastante aceito pela crítica, foi laureado pela Academia Brasileira de Letras (1932) e marcou uma época na literatura nacional. Conferencista de talento, dono da palavra limpa, ao longo de sua produtiva existência proferiu várias palestras, abordando sempre temas polêmicos. Espírito culto, possuidor de um estilo imitável, escrevia sem parar. De 1932 a 1933, produziu: ‘Cães sem Donos’ (romance), ‘Serões de uma Traça’ (volume de crítica) e inexplicavelmente deixou inacabado o romance ‘Caminhos da Bronzeada’. Em 1934, publicou o romance ‘Os Brutos’. Desse último ano é também o seu segundo volume de crítica, intitulado ‘A Seara do Próximo’, que, a exemplo do primeiro, também ficou inédito. Por esse tempo, passou a escrever para as páginas d‘A Gazeta’, editada em São Paulo. Membro da Associação Paulista de Imprensa, em meados de 1935, publicou o polêmico livro ‘As Bases do Separatismo’, cujos exemplares numerados e rubricados pelo autor, foram apreendidos pela polícia, na capital paulista. Por pregar em seu livro a divisão do Brasil em cinco regiões distintas, foi perseguido pelo Governo de Vargas. Retornanodo ao seio familiar, refugiou-se na Fazenda Campo Comprido - de seu pai - enquanto aguardava uma decisão judicial, por parte do Tribunal de Segurança Nacional. Absolvido por unanimidade, por algum tempo, continuou na cidade de Patos, isolado do ‘mundo’, mas apegado a sua pena. Em 1940, publicou seu quarto livro - ‘Bolsos Vazios’. Por esse tempo, passou a colaborar nas páginas d‘A União’, jornal estatal paraibano. Em João Pessoa , no início de 1945, dirigiu ‘O Estado da Paraíba’, matutino independente e noticioso. Ainda em finais daquele ano, convidado, tornou-se crítico literário do jornal ‘A Manhã’, editado no Rio de Janeiro, para onde transferiu-se. Em julho do ano seguinte ingressou nos ‘Diários Associados’. E, com total liberdade de expressão passou a escrever para ‘O Jornal’, onde manteve por quase três anos uma coluna sob o título ‘A Ronda dos Livros’. No Rio de Janeiro, publicou seu quinto livro - ‘Ranger de Dentes’ - romance que traz o subtítulo ‘Crônicas de um Ocaso’ (1945). Com este livro, iniciou uma série de romances autônomos. Assim, produziu ‘As Formigas’ e ‘Espinho Branco’, que ficaram inéditos. O primeiro, traz como subtítulo ‘Crônicas de um Ocaso II’. Nos início dos anos 50, retornou à Paraíba, fixando-se em João Pessoa , onde, logo cedo, passou a militar na imprensa local, atuando como colunista nas páginas d‘O Norte’. Seguidamente, colaborou no ‘Correio da Paraíba’ (1953) e no ‘Paraíba Agrícola’ (1954), bem como no ‘Diário de Notícias’ (1953) e na ‘Gazeta de Alagoas’ (1953), estes últimos, editados no Rio de Janeiro e em Maceió, respectivamente. Seu último livro - ‘Os Carneiros Cinzentos’ - foi publicado em 1954, através da Editora Teone, de João Pessoa. Lamentavelmente, não viveu o suficiente para ver o reconhecimento de sua obra literária, falecendo no dia 15 de janeiro de 1955, em sua residência, no bairro Santa Júlia, na capital paraibana. Seu corpo, em câmara ardente, foi exposto por todo o dia no salão nobre da ‘Associação Paraibana de Imprensa’. Transladado para a cidade de Patos, foi sepultado no Cemitério São Miguel, em sua cidade natal. Homem inteligente e de imaginação fértil, é patrono da cadeira nº 37, da Academia Paraibana de Letras.
Allyrio Meira Wanderley
BOLSOS VAZIOS
Allyrio Meira Wanderley
Esta tarde, estou desocupado; vou contar a minha história. O coração é meu tinteiro. Se estas memórias não findam, é que eu me sobrevivo a mim mesmo. Sim, o homem é a sua ambição e a minha ambição morreu de fome.
Estranhar-se-á que, assim jovem, me volva para o passado? Mas, sem dúvida, explica-se: há tempos, descobri que todo futuro acaba no silêncio único. É curioso e é medonho. Cada passo adiante é um passo atrás; quanto se anda, tanto se recua. A existência é uma retirada...
Bem.
Naquela ingênua cidadezita sertaneja falavam do meu talento. Colaborava num semanário de palmo e meio, domingueiro e literário, discursava na Associação dos Empregados no Comércio quando era preciso discursar, elegiam-me orador do clube de futebol, o invicto e alvirubro Borborema, discutia as obscuridades eternas com o vigário e possuía uma estantezinha abastecida a capricho. Francamente, eu cria também nessa centelha de divindade; era mesmo, em segredo, o meu maior admirador; por isso, talvez, lia até à borda das madrugadas.
Uma ocasião que lhe mostrara um conto de minha lavra, o velho Zeca Escrivão me disse:
Cimaldo, por que não procura outro meio, melhor, no sul do país? Siga o meu alvitre; não enterre sua inteligência num deserto... Seja duro, bote a proa para o alto mar e você irá longe!
Pesei-lhe as palavras. À noite, revi a papelada esboços de novelas, tassalhos de poemas, peças e peças em debuxo onde pressentia inéditos fulgores. Com as duas mãos e um pouco de coragem construiria o meu destino. Abri-me a meu pai e, passada uma semana, despediamo-nos:
Prometo-lhe ser alguém...
Vai, meu filho, e tem fé!
Beijei minha mãe, cega de lágrimas; abracei o amigo, o suave Zeca Escrivão. No céu, surgiu um instante dourado; depois, os craúnas e os reflexos acordaram. Meu pai, o doce e forte lavrador, segurando-me o estribo, e o olhar muito fito em meu olhar, advertiu-me ainda:
A vida costuma puxar a gente para baixo; custe o que custar, sê um homem, meu filho!
Ouvi e calei. A manhã cantava pelos caminhos, como uma mulher loura; a terra, a amada do sol, espreguiçava-se toda, descansada e cérula. Deixei o claro solo natal, atravessei ruidoso regato fulvo e saí, sozinho e desarmado, no encalço da minha ilusão.
Cheguei, lembro-me, num setembro à Paulicéia. As moscas alegravam-se de achar luz abundante sobre as paredes, arremansava-se nos jardins uma efusão de verdes, borboletas ansiosas e azuladas vogavam entre os postes e os gritos da rua. Tomada de primavera, a cidade era múrmura e inquieta opala atravessada de resplendores ou embaçada de cerrações.
Morava em Santa Ifigênia, numa pensão alemã e estudava num externato, pertinho. Alinhavava os preparatórios e meu pai, muito sabido, desejava um bacharel na família. Então, eu fitava sempre o céu, como um girassol. Divagava pelas leituras, como por países de fada e lenda e ouro. No ar, as horas rolavam a custo, semelhando insetos de chumbo, tal a densidade de esperança. E à noite, a um canto do quartinho, montão de esterlinas ou de estrelas, lá estava a fulgir abafadamente na penumbra aquela miragem... Não compreendia bem o que fosse mas dava-lhe um nome, que esqueci. Às vezes, surpreendia-me de novo na terrinha natal e meiga: debaixo de uma cajarana bem velhinha, ao lado de Zeca Escrivão, rodeados da saudade e do arrebol, recordávamos os entardeceres e as fantasias indeléveis de outora; uma sussurração densa e macia, e agradável como o incenso, subia das casas, rojava nas ruas, vinha os pés aliar-me infindamente.
Quimeras de papelão.
Não contraí doenças nem amizades. Cristóvão Dourado, paulista e moreno, e Carmelo Verpetti, pintor de quatro lustros, eram as minhas camaradagens. Dias inteiros, no terraço da pensão, de relações cortadas com o mundo e esquecidos das espantosas realidades da vida, devaneávamos a todo pano ou escutávamos a tagarelice estentórea dos altofalantes. Desprezávamos a loucura ecumênica; só nos interessava a existência em cor das telas, a conquista do mármore selvagem ou o desabrochar das estrofes de chama e de anil.
Habitávamos longe, muito longe, na ilha do sonho...
Tinha seu valorzinho o Dourado. Estudara gramática um mês e tanto, e não emburrecera inteiramente. Publicara alguns versos e contos, granja grossa e pouco ouro; daí, perderem-no os colegas. Saciado de elogios, foi mais uma promessa crônica, gênio latente e consagrado, a atravancar-nos as confeitarias e a literatura.
São as vítimas do incenso...
Doutro metal, o Verpetti. Sem dúvida, não raro se parecia com os demais. Por exemplo: era um mamífero também. Mas, tinha o ombro esquerdo mais alto que o direito e nunca lhe descobri a corrente obsessão da publicidade; nascera com a mazela azul do talento, o infeliz. Por isso, uma vez, ao crepúsculo, num viaduto, sucedeu-lhe o que lhe sucedeu. Prejudicavam-no, no palco da terra, as suas intemperanças de ilusão, um apego de ostra à penumbra e lamentável incapacidade para o descaramento.
Que espera da vida, Carmelo? perguntei-lhe uma ocasião. Cimaldo, imagina-se que se tem inteligência e não se passa, freqüentemente, de uma besta iludida. Besta de boa fé; mas besta, Cimaldo.
Dourado atalhou-lhe:
Modéstia é vício. Se eu pensasse assim não estaria consolidado...
- ...pelo florescente cabotinismo nacional.
Ganhei o meu lugarzinho na literatura, meninos!
A literatura, dita brasileira, lembra uma literatura, como uma melancia lembra uma montanha...
Os seus contos e versos, esparsos em revistas e gazetas, eram a sua vigilante e intratável vaidade; tirante esse pequeno sem brilho, restava uma inofensiva criatura, passo tardio, costas abauladas, cabelo a fartar e duas palmas de moça o Cristóvão Dourado.
Através do portão, víamos a rua carregada de bulício e de ocaso. A vida vagava, vestida de seda e de chita, as mãos cheias de promessas e de castigos, um olhar de vidro na pupila que era um sol. E cruzavam muitos homens, muitos: aquele arrastava um cuidado, semelhante a grossa cadeia de ferro: acolá, outro, de casimira cinzenta, coxeava com o sapato apertado; um terceiro, que lhe pisou o pé direito, sobraçava sorrindo e apressado, um ramalhete de orquídeas; atrás dele vinha esse aqui, doce e lento, turvo, descoberto, sempre à espera de mirtos e de louros para a calva...
De improviso, Dourado observou:
Olhem, que perna... No ponto do bonde, a moça de meias cor de carne... Meu Deus!
Bom, já vimos; agora, voltemos ao assunto, disse Verpetti.
Não vale a pena, o Cimaldo implica...
Implico, não.
Ao menos, publiquei o que pude; e você?
Alguns têm vivacidade, improvisam, e é muito; outros têm paciência, elaboram, e é mais.
Há não sei quanto, anuncia um romance e o romance nada de aparecer...
Para começar pelo canibalismo gramatical desta época dos folhetos? Aprendo antes: depois, não me confundirei com os abutres do idioma. Quero nascer mestre. Aqui, ou se escreve demais ou se escreve de menos, pára-se na estréia ou produz-se às arrobas; daí, sermos atrofiados ou efêmeros.
Isso, entre nós, ainda é mitologia... E, por cima, também se admira por contágio ou por sugestão; donde, a vitalidade das famas de cobre!
Ora! que lucraria eu em matar-me na caça da perfeição?
A arte se basta, Cristóvão; é o que tem de comum com o sol.
Para mim, o essencial é o aplauso.
Isto me irritou até a medula; gritei:
Afinal, não me espantam os progressos da imbecilidade humana!
Não se briga por opiniões, interveio Verpetti.
Por opiniões é que se briga!
Tolices...
Mas, não é? Os nossos poetas, em regra com a olímpica vocação da albarda, são uns autômatos versejantes. E, cantar sem sentir não é mentir a cantar?
A sinceridade faz o justo, Cimaldo; o artista, não. É necessário pôr mais alguma coisa...
A inspiração? indaguei, suspenso.
A habilidade! retrucou, sorrindo,.
Ao cabo, retorqui-lhe, pouco se me dá; a importância da poesia é a mesma do berimbau.
Escurecia. Só uma chama de sol, escarlate e póstuma, percorria as nuvens.
Baixavam-se as portas de aço das lojas, acendiam-se as vitrinas e duas ou três estrelas acabavam de chegar ao céu, nuas como raparigas que se banham num mar azul. Dourado e Verpetti retiraram-se quase logo e eu, que precisava argamassar o futuro à força de músculo e desejo, corria ao trabalho.
Uma esperança inveterada.
Arrependido dos meus ócios, via a insondável esterilidade da preguiça. É um crime malversar as horas. Sentir é muito; pensar é mais; obrar é tudo. Aquecia-me e lutava. Sim; sonhar, poder e subir...
Mas, refletia de repente, de que servem as nossas suntuosas ninharias se até o sol, no alto ar, uma vez se apagará como uma brasa pequena?
Eis a incansabilidade do tempo. Ontem, seduzia-me uma narração da carochinha; hoje, apavora-me a novela da eternidade. A morte, no seu apetite de aniquilamento, consome deuses, rios, constelações inteiras e ainda apanha, aqui no quintal da pensão, as formiguinhas que passam tão baixo e as exíguas lagartas verdes que moram no fundo das rosas.
A carne range e o osso treme, se se pensa, e, se não, dá no mesmo; a sua foice infalível não esquece nem despreza.
Distraio-me, garatujando as paredes com giz. Rio dos bonecos, os bonecos riem de mim, e os minutos batem em todos nós com os seus machados pesados, e ninguém sente nada. Um dia, inesperadamente, eles nos desvaneceram da face da vida!
Cristóvão Dourado advertiu-me: Procure uma namorada; estudar, estudar, estudar, é perigoso: acaba fazendo calos na palma da mão... Divida as horas.
Porém, ajeite-se, primeiro; nada de gravata para o ombro, punhos esfiapados, barbas de mês, sabe?
Nesse comenos, encontrei no bonde da Barra Funda uma rapariguinha quieta, míope, leitosa; mais tarde, parava na esquina e ela se debruçava da janela, piscando mansamente por detrás dos óculos.
Senhorita, têm-se visto casos em que o amor fez de um homem qualquer um grande homem...
Coisas de cinema, Cimaldo!
Coisas da realidade, da realidade também... Que pretenderia que eu fosse?
Meu ideal... meu ideal mesmo... está em Hollywood!
Virei as costas àquela alma sem asas e recaí nos antigos hábitos. Escrevinhava freneticamente, doido por ver a feição da minha frase: delineava o primeiro romance: A Vocação de Jarjalã. Do Nordeste, no fim do mês, recebia a mesada; pagava aqui, pagava ali, pagava além e, dois dias após, um tostão não me restava.
Era assim eu, Cimaldo Olídio, quando cheguei à Paulicéia, em mil novecentos e tantos, com quase vinte anos, sobeja esperança e nenhum dinheiro; agora, nesta tarde de ócio e de bruma, quis dar-me ao trabalho de tecer, com algum amor, nem sei porque, este ramo de lembranças e de violetas...
(Do Livro 'Bolsos vazios')