segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

 

PEDRO AMÉRICO: Cidadão do Brasil,

Pintor do mundo

 

Herman Lima

 

Pedro Américo teria sido talvez o maior pintor do Brasil, como ficou sendo o brasileiríssimo Almeida Júnior, se o destino retardasse por uns dois ou três lustros pelo menos a chegada de certos sábios estrangeiros à sua cidadezinha paraibana.

Já o ilustre Gilberto Freyre, com a sua argúcia de sociólogo, remexedor das raízes abstrusas da nossa gens, marcou, com incisivo reparo, o mal que lhe fez à precocidade de nove anos a incumbência técnica de adido oficial a sisuda comissão cientifica do francês Brunet e do alemão Bindseil: “Ha alguma coisa de menino roubado pelos ciganos no caso de Pedro Américo, arrancado criança à família e à loja do pai por dois bruxos europeus em viagem cientifica pelos sertões do Nordeste”.

 

                                                                    Pedro Américo

 Pense-se de fato no que não seria essa aventura para a personalidade do pequenino artista que, na idade de andar com os moleques da cidade, jogando cangapé nas lagoas cheias ou em estrepolias pelos terreiros das fazendas, se via de repente encangado a dois sábios, correndo os sertões a copiar nervuras de folhas e estruturas de fosseis, munido duma solene nomeação do presidente da província, às voltas com um contrato de gente grande, que lhe tolheria as tendências para o resto da vida.

Tão grande foi o estigma desse jugo na alma do futuro grande pintor que em toda a sua obra vasta nenhuma tela, por mais despretensiosa que seja, revela um ímpeto de rebeldia, um assomo de independência artística, uma explosão desaforada do ‘eu’, que lembrasse de longe sequer o filho dos matutos nordestinos, de infância embalada ao som das modinhas sertanejas, das toadas dos aboios e do zumbido mole dos desafios. “É* o que mais falta, a meu ver, à alma e à vida de Pedro Américo: alegria, inquietação, adolescência”.

Cá dê nunca mais, em quase meia centena de quadros de tanto assunto variado, a mão do menino arteiro que espantava os patrícios de pé no chão, rabiscando a carantonha do famoso frei Serafim ou traçava na parede caiada de casa um galo madrugador que só faltava cantar para ser de verdade? Que foi que fizeram do meninozinho pensativo, de carinha redonda e olhos coruscantes, como está no estupendo autorretrato dos seus onze anos? Onde se meteu mesmo o rapagão que poderia ter sido ele, varejador das caatingas atrás do boi fujão, serenatista de voz saudosa para sacudir o coração das caboclas da beira da estrada, bonitão e desempenado, com aqueles bigodes torcidos que Deus lhe deu, tão bom “para bater o barro socado das casinhas de taipa, no furdunço do fandango, com aqueles pés viajeiros que iriam uma vez, por desfastio, de Paris ao condado de Baden?

Quando o pequenino desenhista da comissão  Brunet tivesse seus vinte anos bem puxados, o corpo mordido pelo sol das várzeas nordestinas, duro do chouto dos cavalos de campo e das labutas do plantio, o ouvido remoendo como um busio o farfalho da mata e a cantilena do ribeirão que desce da serra, o olfato bem vivo para o cheiro dos engenhos e das madrugadas no curral (estrume novo e leite espumando na caneca de flandres), o gosto de todas as frutas da mata na língua, caju, cajá, ubaia, mangaba, e água de coco da baixada, misturada de sol e de luar fresquinho da boca da noite, os olhos ardendo de tanto azul, de tanta estrela, de tanto verde de folharedo e de mar bravo — e as mãos, os olhos, a boca, o olfato, o ouvido embebedados de todos os dengues da cabocla que se desfolha no samba ou nas águas do rio como ninfeia - então, sim, poderia enterrar-se nas aulas graves da imperial Escola de Belas Artes, poderia meter-se anos e anos nos salões dos museus de Florença e de Paris, sem risco mais de deixar por lá o umbigo, como deixou, desenraizado da paisagem natal, alheio para sempre ás coisas e ás gentes de sua terra, estranho entre os seus, a ponto de escrever aos 21 anos a seu amigo Victor Meirelles estas linhas desconsoladoras:

“Minha natureza é outra; não creio dobrar-me com facilidade ás exigências passageiras dos costumes de cada época, que também são uma das fontes em que um talento como o seu pode achar pérolas, A minha paixão so a historia sagrada sacia-a”.

 Não há porém por que culpar em demasia a este jovem de múltiplos rumos, simultaneamente panfletário, homem de gabinete, autor duma “Hipótese relativa à causa do fenômeno chamado luz zodiacal”, duma “Memória sobre a conjugação do Spirogira Quinino”,  duma obra didática sobre o ensino livre das ciências naturais e duma refutação à Vida de Jesus, de Renan, político e romancista, além de adjunto a universidades europeias por via de ruidosos concursos, professor de belas artes no Brasil, pintor da Bíblia, pintor de batalhas.

Seu mal vinha em linha reta do oficialismo de seus primórdios artísticos, do ferrete técnico a que o cingira a malfada a expedição a que deveu a gloria e o martírio. Vinha de mais complexas raízes ainda, pois era apenas o mal do homem do século XIX, devorado de cientificismo e de angustia intelectual, de alma ‘perpetuamente inquieta’, como lembra Henri Focillon: “Une tristesse l’obsède. Elle lui donne le nom de cet âge même - le mal du siécle - mélancolie non pas sèche ou malsaine, mais ivresse créatrice aussi. Toute mesure lui est étroile; sans cesse elle tend à illimité; le héros qu’elle s'est fait, le ‘penscur’, n’est pas l’homme qui raisonne, mais le rêveur et le voyant”.

Perdido em pleno romantismo francês, ao contato dos grandes nomes que foram os últimos lampejos da escola e da época, ao jeito de Ingres e de Flandrin, Pedro Américo engolfava-se no mesmo desígnio funesto dos pre-rafaelistas ingleses, encharcados de teorias e de princípios, poetas e ensaístas acima de tudo, egressos do momento, que premeditadamente fugiam ao cotidiano, para a vida convencional de eras artisticamente exaustas, vindo daí toda essa prodigiosa serie de frígidas academias em que o seu gênio artístico se dispersou, prodigamente, toda essa galeria de episódios anedóticos e literários, brilhantes sem duvida muita vez, mas desprovidos de seiva atual, carentes de emoção - desvitaminados, como diria um critico rebarbativo de hoje - em vez de florir numa obra espontânea e impulsiva, que o teria levado ao mais alto cimo da arte brasileira, porque animada de verdade e de vida.

Desenhista prodigioso, a que falta apenas, como pintor, um certo dom de consistência e de volume no modelado dos nus femininos - capaz de ser o nosso maior pintor de batalhas, sem que se preocupasse, em absoluto, com o gênero, a levarmos em conta suas próprias, palavras citadas antes, era Pedro Américo acima de tudo um estupendo colorista, nutrido dos melhores ensinamentos da escola veneziana, como acentuava a propósito de Carioca o admirável Gonzaga Duque: “A cor é o seu tour de souplesse.

O pintor coadjuva especialmente o desenhista. A tinta é o seu segredo, é o poder criador das suas obras. É uma prodigiosa boceta de Pandora, essa palheta brilhante e opulenta. Assim o esboço, a figura, tal como ela se apresenta na sua imaginação, dá-lhe o movimento próprio, e depois reanima-a, isto é dá-lhe cor. Não é uma cor convencional, preparada, premeditada, escolhida, não; é a cor de que ela precisa para viver, que ela deve ter para mover-se”.

No entanto, quando quer ser grandioso, como em Judite e Holofernes, é apenas declamatório. Quando intenta transmitir o êxtase da pastorinha de Domrerny, é somente um esgar de espanto figé numa máscara de modelo que se perpetua na tela. Tudo isso porquê? Porque, homem sem imaginação despresando a pintura como expressão pura, como fixação do ‘momento’ de eternidade que há na vida e na coisa mais simples, seja na nonchalance do ‘Caipira picando fumo’, de Almeida Júnior, no jeitinho de gazela da Gioventú de Visconti, ou no fabuloso ‘Boi escorchado’ de Rembrandt, Pedro Américo recorria ao puramente episódico da historia ou da literatura, dele podendo-se dizer perfeitamente o que dos mesmos pre-rafaelitas disse o grande crítico de arte inglês, Clibe Bell: “ask en admirer of their pictures to tell you exactly what he finds in one oj them, and you will notice that all he has to say might just as well be said of a book”.

Ora, pintura e literatura não se interpenetram. Pintura que pretende apenas contar é pintura falsa. Sua mensagem, por mais pura e sincera nas intenções, falhou por conseguinte por um erro de origem e principalmente de data, pois, entre David e Cézanne, o nosso insigne compatriota preferiu ficar com o romantismo, esquecido de que “a época termina, o mundo continua”.

Todavia, que extraordinário pintor não foi o autor daquele turbilhão de cavalos e guerreiros, de fumo e sangue da Batalha de Avaí ou dessa maravilhosa trilogia de retratos - Almeida Reis, Fagundes Varela e o autorretrato da coleção Cardoso de Oliveira - nos quais volta a ser ele mesmo, sem premeditação, sem calculismos, sem preparo, capaz de inquietações e de ímpetos adolescentes, como o pequenino rabiscador da longínqua Areia - capaz de novo de pintar com ‘‘seu sangue”, para seguir o conceito universal a que alude Wollf.


FONTE:

Revista da Semana, Ano XLIV, nº 17, Rio de Janeiro, edição de 24 de abril de 1943, pág. 3.

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