ERNANI AIRES SÁTYRO E SOUSA
José Ozildo dos Santos
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asceu na cidade de Patos, aos 11 de setembro de 1911, sendo filho do casal Miguel Sátyro e Sousa (importante líder político local) e Capitulina Aires Sátyro e Sousa. Em Patos, fez seu curso primário, tendo como professores, entre outros, Alfredo Cabral, Rafael Correia de Oliveira e Renato de Alencar. Em 1924, transferiu-se para a capital paraibana, matriculando-se no Colégio Diocesano Pio X. Três anos mais tarde, ingressou no tradicional Lyceu Paraibano, onde concluiu o antigo curso de preparatórios. Em 1930, matriculou-se na Faculdade de Direito do Recife. Naquela Faculdade, logo cedo engajou-se no movimento estudantil, vindo a ocupar a presidência do Diretório Acadêmico em 1933, ano em que diplomou-se em Ciências Jurídicas e Sociais. Ainda no Recife, manteve suas primeiras relações com os escritores Gilberto Freire, Olívio Montenegro e Odilon Nestor. Volvendo à Paraíba, instalou-se com banca de advogado na cidade de Patos e não desmentindo às tradições de sua família, ingressou na política, elegendo-se deputado à Assembleia Estadual Constituinte, pelo Partido Libertador, nas eleições realizadas em 14 de outubro de 1934. Com a dissolução da Assembleia Legislativa, após o Golpe do Estado Novo (10-11-1937), teve seu mandado parlamentar prejudicado. E, fixando residência em Campina Grande , passou a dedicar-se à advocacia, atuando também na capital do Estado e em Patos. Em 1939, a convite de Argemiro de Figueiredo - que, à época governava a Paraíba, na condição de Interventor Federal - assumiu o cargo de Chefe de Polícia, em cujas funções permaneceu até 9 de julho de 1940, quando foi nomeado Prefeito do município de João Pessoa. Sua passagem pela Prefeitura da capital, foi meteórica. Dezenove dias após haver tomado posse, veio a queda de Argemiro de Figueiredo, determinando, consequentemente, seu afastamento do referido cargo. De 1940 a 1945, fez exclusivamente advocacia em Campina Grande. Nesta época, iniciou-se na literatura, chegando a escrever uma novela, intitulada ‘Rosa dos Ventos’, transformada, posteriormente, no romance ‘O Quadro Negro’. Em princípios de 1943, publicou seu primeiro trabalho jurídico, sob o título ‘O Novo Conceito de Legítima Defesa’. Dois anos depois, com a redemocratização do país, ingressou na União Democrática Nacional - UDN, de cuja legenda foi um de seus fundadores na Paraíba, elegendo-se deputado à Assembleia Nacional Constituinte. Na Câmara dos Deputados, logo firmou-se como parlamentar atuante, integrando o bloco da oposição e na condição de vice-líder de sua bancada, projetou-se nacionalmente. Reeleito para sucessivas legislaturas, pertenceu as Comissões de Legislação Social, Justiça, Orçamento e do Polígono das Secas, além de ter participado de várias comissões especiais. Em 1950, iniciou uma intensa atividade literária, escrevendo numerosos ensaios, que foram publicados em suplementos literários dos jornais O Jornal de Letras, Tribuna da Imprensa, Diário Carioca e Diário de Noticias, no Rio de Janeiro. Quatro anos mais tarde, quando conseguiu seu terceiro mandato federal, publicou seu primeiro livro: ‘O Quadro Negro’ - que foi bem recebido pela crítica literária - seguido depois por ‘Mariana’, que saiu do prelo em 1958. Em 1960, seguindo a orientação da UDN, engajou-se na campanha que levou Jânio Quadros à Presidência da República. No ano seguinte, elegeu-se Secretário-Geral de seu partido, em âmbito nacional, adotando após a renuncia de Jânio, uma postura oposicionista em relação ao Governo João Goulart. Após a Revolução de 1964, foi eleito Presidente do Bloco Parlamentar Revolucionário, criado com o objetivo de dar sustentação parlamentar ao Governo Castelo Branco. E, eleito Presidente Nacional da UDN (1965), ocupou o referido cargo até a instituição do bipartidarismo. Em março de 1967, a convite do presidente Costa e Silva, passou a exercer a liderança do governo, na Câmara Federal. Em 1968, foi nomeado Ministro do Superior Tribunal Militar. Dois anos mais tarde, já aposentado do STM, foi eleito governador do Estado da Paraíba, por via indireta, no dia 3 de outubro de 1970, para o quatriênio de 1971-1975, tomando posse no governo da Paraíba, perante a Assembleia Legislativa, em solenidade realizada aos 15 de março de 1971. Seu governo foi considerado operoso, destacando-se entre suas realizações, as seguintes obras: Centro Administrativo de Jaguaribe; Edifício da Assembleia Legislativa; Estádio de Futebol de João Pessoa; Estádio de Futebol de Campina Grande; conclusão do Hotel Tambaú; I Adutora de Campina Grande; Mercado de Artesanato (João Pessoa); Edifício de ‘A União’, no Distrito Industrial de João Pessoa; o Fórum Municipal ‘Miguel Sátyro e Sousa’, na cidade de Patos; além da construção de várias escolas polivalentes e colégios estaduais, nas cidades de João Pessoa, Campina Grande, Sousa, Cuité, Pombal, Cabedelo, Guarabira, Alagoa Nova e Cajazeiras. Como governador, permaneceu no exercício de suas funções administrativas até o final de seu mandado e no dia 15 de março de 1975, transferiu o referido cargo ao seu sucessor, o Dr. Ivan Bichara Sobreira. Em 1978, reelegeu-se para seu sétimo mandato como deputado federal. Quatro anos mais tarde, foi reconduzido à Câmara dos Deputados. Este foi, portanto, seu último mandato parlamentar. Faleceu na madrugada do dia 8 de maio de 1986, em Brasília, no pleno exercício de suas atividades parlamentares. Homem de letras e escritor talentoso, viveu dividido entre a política e a literatura. Pertenceu à Academia Paraibana de Letras, à Academia Brasiliense de Letras, ao Instituto Histórico e Geográfico Paraibano e à Academia de Letras de Campina Grande e foi sócio corresponde da Academia Acreana de Letras. Criado o Instituto Histórico e Geográfico de Patos, foi escolhido patrono da cadeira nº 3. Patoense dos mais ilustres, no dia 8 de maio de 1993, seus restos mortais foram transladados para sua cidade natal e depositados num mausoléu construído na fundação da qual é patrono, instituída pelo governo do estado, através da Lei nº 5.048, de 21 de junho de 1988, visando dinamizar a cultura no sertão paraibano. Em 1992, a referida fundação, iniciou a publicação de suas ‘Obras Completas’, composta por romances, poesias, ensaios, discursos, conferência e pareceres, prevendo a publicação inicial de 38 volumes, projeto este, que encontra-se em desenvolvimento.
ANTOLOGIA
O QUADRO NEGRO
SÁTYRO, Ernani. O quadro negro. 3 ed. Patos: Fundação Ernani Sátyro, 1994, págs. 151-180. (Obras Completas, vol. 4).
DEZEMBRO
Sábado, 1º
Desnecessário é esclarecer que o velho Cazuza fora aconselhar-se com o major Gabriel. Voltava de lá, ontem, quando me encontrou conversando com Ventania.
Gabriel Soares é seguro e lento nas resoluções. Disse que ia pensar, e pensou. Não confiando no delegado, mandou chamar diretamente o cabo Rebolo. Este é de sua absoluta confiança. Disse-lhe que escolhesse três soldados bons, para uma diligência importante. Rebolo, que já conhece o destacamento, respondeu que confia em dois, mas um deles já está velho, quase inutilizado. É o soldado Ananias. O outro é o anspeçada Prego, fiel e valente. Os restantes não valiam nada. Andavam de cochicho com os cabras de Paulino Correia. Havia um soldadinho novato, o Inácio, de cara cheia de espinhas, que parecia disposto. Não constava que tivesse ligações na terra. Ficou combinado que Inácio também iria.
A diligência deve seguir hoje à noite. Parece que somente o cabo sabe a que vai. O capitão Cazuza já mandou chamar Gonçalo, para estar aqui ‘à boquinha da noite’.
Encontrei o delegado na rua, todo desconfiado. Mal me cumprimentou, sem olhar para mim.
Eis uma fase de minha vida em que os acontecimentos exteriores me absorvem, tomam-me tempo e atenção. Ao seu encontro me adormecem as energias interiores.
Domingo, 2
A diligência saiu ontem à noite. É o acontecimento que está enchendo os meus dias, essa tentativa de prender um criminoso hipotético, com base exclusiva na palavra de um rastejador. Afinal, não será a primeira vez, nem certamente a última, nestas nossas paragens.
Segunda-feira, 3
Noite
O serviço foi rápido e seguro. A tropa saíra da cidade no sábado, logo que escurecera de todo. Ontem à tarde já estava de volta. O velho Cazuza arranjara animais para conduzir a diligência. O endereço era certo, não havia necessidade de despender energias em longa caminhada a pé.
Quando ia amanhecendo, a casa indicada por Gonçalo estava cercada. Pertence a Paulino Correia e fica no ocidente do município, bem pertinho da fronteira com Serra Grande.
Não houve resistência. A conversa do cabo Rebolo foi curta e decidida: ‘Ou se rendem ou morrem’. Chorava mulher e menino por todo canto.
O criminoso é Tourão, autor de vários homicídios, um deles neste município. Disse-me o cabo, em cujas informações me louvo ao escrever esta nota, que o soldado Inácio, no momento da prisão, puxou um punhal, com o propósito evidente de atingir Tourão. O cabo evitou-o, chegando mesmo a dizer ao soldado que, se tentasse matar o preso seria alvejado ali mesmo.
Esse Rebolo é um acontecimento. Se eu fosse governo, ele seria promovido a tenente. Pelo menos a sargento. Vou lembrar isto ao velho Cazuza, para falar a Gabriel.
Durante a viagem, o cabo foi desconfiando da conversa de Inácio, o soldado amarelo da cara cheia de espinhas. Estava certo de que ele queria fazer uma traição. Mas não pensou que fosse contra o preso, e sim contra os companheiros.
Efetuada a prisão, Tourão foi logo algemado. A Dona da casa mostrava-se agora mais sossegada. Chegou mesmo a agradecer ao cabo o respeito que teve ao seu lar. Devia realmente estar muito alegre, a pobre moradora de Paulino Caboclo, por se ver livre do hóspede incômodo que o patrão alojara na sua residência.
Informa o cabo, confirmado em tudo Gonçalo , que Tourão esmoreceu, ao ouvir a voz de prisão. Não pegou sequer as armas, que foram apreendidas. Era um refle bem municiado, uma pistola máuser e um punhal. Depois de algemado; o criminoso pediu garantia de vida e contou a história toda, sem ninguém lhe perguntar. Matara Honório a mandado de Paulino Correia. E ficara ali escondido, porque tinha outros serviços a fazer. Não sabia em quem, aguardava a ordem de ‘seu Caboclo’.
Na cidade, com a cadeia cheia de gente. Tourão contou a mesma história. Confessou outros crimes, parece que alguns até imaginários, cometidos lá para o Ceará.
A detenção de Tourão é ilegal. Não foi preso em flagrante, não há qualquer procedimento judicial contra ele. Deus queira que não apareça advogado para requerer ‘habeas-corpus’. E vamos ver se Adriano apressa o processo, para legalizar a situação. É verdade que o alvo principal da justiça não deve ser Tourão, e sim o Caboclo. Mas, sem o depoimento do primeiro, sem a sua pronúncia, não se pode esperar a punição do mandante.
O delegado Francisco Justino tem recebido muitos cumprimentos, pela ‘diligência feliz’. Mas não mostra alegria, o pobre diabo. Não é só a humilhação de quem sabe nada haver feito. É alguma coisa mais funda, talvez até receio de vingança. Quem sabe lá a quanto andavam as suas conversas com Paulino Correia?
O certo é que nosso delegado já tomou o depoimento de Tourão, do cabo, de Gonçalo e dos dois soldados, Ananias e Inácio. Este último ainda titubeou, ao ser interrogado sobre a confissão do criminoso. Adiantou-se um pouco, achando que o ‘major Caboclo’ não era capaz disso. O delegado não mandou escrever isto, e fez mal.
Coisa curiosa: Paulino Correia, na boca de Inácio, já chegou a major. O crime deu-lhe direito a essa promoção.
Pedi ao velho Cazuza que falasse ao chefe sobre a necessidade de apressar o processo. É necessário decretar a prisão preventiva de Cabloco e legalizar a detenção do autor material do homicídio. Somente Gabriel Soares tem força para mover o nosso boníssimo juiz, assoberbado com seus jornais e seus santos.
Há no episódio da chegada de Tourão uma nota que não pode ficar esquecida. É que várias pessoas, na cidade, depois de vê-lo, começam a atestar que o reconheceram antes, no momento do crime.
Até o velho Cazuza – vejam lá quem! – veio para o meu lado com esta conversa fiada:
- Não, eu não digo que soubesse de certeza, porque também não assisti o crime, mas que tinha minhas desconfianças, lá isso tinha.
Saí da sala para não discutir nem dar uma bruta gargalhada.
Para encerrar e ir dormir, quero deixar registrado que o delegado mandou intimar o Caboclo para vir prestar declarações na quarta-feira. Como seria bom se o juiz fosse mais ativo e lhe decretasse a prisão, depois de confirmados os depoimentos em juízo!
Quarta-feira, 5
Veio o Caboclo e depôs. Como era de esperar, negou tudo. Foi acareado com Tourão. Cada um sustentou a sua história.
Parece que Tourão já está cansado dessa vida de empreitadas de homicídio. É a impressão que me deixa. Sente-se mais seguro na cadeia.
Foram expedidos telegramas para as localidades onde ele diz ter cometido crimes. Quanto ao assassínio anterior, praticado aqui no termo de Lagoa, não se encontrou nem sinal do processo. Os escrivães continuam dando busca, mas parece que inutilmente.
Noite
Fico a pensar na imprevidência dos criminosos. Não nessa imprevidência ligada aos detalhes que sempre os denuncia e de que falam os criminalistas. Não é isto. Falo de sua inconsequência, da desnecessidade do crime para solucionar problemas.
Se Paulino Correia se houvesse orientado, neste episódio do estupro de Creusa, pelas instruções de seu advogado, com toda probabilidade seria absolvido, ou mesmo impronunciado. A prova era difícil de fazer, mesmo com o depoimento de Honório. A justiça, aqui, como se sabe, arrasta-se lentamente. O povo, em geral, só é favorável à vítima nos primeiros momentos. Depois, o criminoso é que merece atenções. Ou é um desgraçado ou um herói.
A questão de terra, de que resultou uma tentativa de morte, também seria resolvida harmonicamente. A presença do chefe não tinha outro sentido. Gabriel não quer brigas nem demandas, no seio do seu rebanho.
Dizem que o Caboclo se sente um tanto incomodado nas malhas de seus próprios crimes. O velho Cazuza, com a astúcia que está no seu sangue, arranjou um espião entre os moradores do inimigo. O rapaz já foi duas vezes, alta noite, levar novidades a Timbaúba. Pelas suas informações, o homem está mesmo como uma fera acuada. Leva o dia a andar dentro de casa, preocupado e iracundo:
- Agora só se fala em lei; porque a lei isso, porque a lei aquilo. Mas estão enganados. Eles têm a lei deles, eu tenho a minha. Vamos ver qual é a melhor.
De tempos em tempos vai ao pé do pote, vira um gole de cachaça, pigarreia e continua nas suas meditações em voz alta. É o que informa o espião, cujo espinhaço não me parece que esteja livre de uma boa sova. Diz ele que, ao receber a intimação da policia para vir depor, Paulino Correia comentara:
- Aquele Doutorzinho queria dinheiro, apesar de já ter muito, ele e o pai. Mas queria dinheiro, ou um bom pedaço de terra. Besta fui eu, por não ter compreendido logo, podia ter-lhe enchido a barriga. Agora é tarde, será o Deus quiser.
O nosso Calabar acrescenta que a tosse do Caboclo tem aumentado muito. O escrivão da delegacia também me deu a mesma informação.
O Caboclo contratou definitivamente os serviços do Dr. Portela, juiz aposentado e chefe da oposição. Bom homem, o Portela. Simples e honesto. Só é muito ingênuo para acreditar nas histórias de seus constituintes. Também os vencimentos mal lhe chegam para viver.
Sábado, 8
Por mais que procure chamar o pensamento à realidade, meu estado de espírito é de estupefação. Não poderei dizer que me esteja saindo mal na profissão, que minha carreira resulte num fracasso. Não, o que me surpreende não é isso. É que as situações, quase todas, com raríssimas exceções, me estão vindo de modo inteiramente diferente do que eu esperava.
Que é que eu esperava? Não sei bem defini-lo, mas era assim uma impressão de que o Direito, a Justiça, a Verdade, cada um desses elementos constituía um ser determinado e singular, embora não tão fácil de se revelar à primeira vista. Dependeria, então, do talento do advogado, de sua cultura e esforço, no curso da demanda, vencer o adversário na procura dessas entidades, concretas na minha imaginação.
O que vejo, porém, é diverso e desconcertante. Começa pelo juiz que não quer trabalhar.
O primeiro feito que acompanhei em juízo, ou melhor, a primeira ação que movi – uma ação ordinária de indenização – teve o resultado que já vimos. O constituinte fez um acordo à minha revelia, quase me destruindo todo o ânimo de prosseguir no exercício de minha profissão.
De um certo modo, só as questões de Paulino Correia contém vida. Vida, porém, num sentido diverso daquele que eu imaginava. A noção que eu tinha dos criminosos também era diferente. Minha cabeça estava cheia das classificações ‘oficiais’.
O criminoso para mim era como o animal selvagem. Por mais feroz que ele tivesse sido na selva, uma vez caído nas malhas da justiça, não passava de um objeto de museu, para ser punido, examinado nos seus estigmas, passivamente guardado na cadeia. Por ingênua que considerem minha concepção, era esta que estou descrevendo.
Mas, qual! Os criminosos não se dão por achados. Reagem com toda a astúcia e violência de que são capazes. Paulino Correia se julga uma vitima da justiça, principalmente ‘desse advogadozinho que chegou ai, filho de Cazuza barriga-de-soro’. É como me trata. Na sua concepção, os criminosos somos nós, que não o deixamos tomar as terras alheias, e não permitimos continue ele a fazer de donzelas desprotegidas o pasto para voracidade de seus instintos. Desde que não pode mais, sem perigo de aborrecimentos, arrancar marcos judiciais, atirar nos empregados alheios e surrar seus próprios moradores, passa a considerar-se uma vitima.
Coisa curiosa, em que quero insistir, para depositar fielmente meu pensamento neste caderno, já hoje meu companheiro, meu amigo e meu confidente: tudo me saiu diferente, em todos os sentidos. A advocacia, em si, nos casos mais comuns é fria e medíocre, uma convivência de papel velho de selos e autos. Nada do frêmito poético que eu imaginava. E, contraditoriamente, os casos quem têm vida, trazem obstáculos, contra os quais a justiça não dispõe de recursos.
Tremendamente difícil, escrever o que se sente. Procurarei melhor explicar-me, dizendo que fazia da luta forense uma ideia assim igual a uma competição turística ou esportiva. Mas uma competição em que todos agissem lisamente, com bravura e galhardia, com elegância e honestidade. O mais capaz, então, dos dois contendores, aquele que conseguisse dominar o adversário, pelos seus talentos e conhecimentos jurídicos, e que também deveria ser o defensor do melhor direito, este então seria o vitorioso na causa.
Mas, qual, meus amigos! A vida aqui fora, ‘neste vasto mundo’, como costuma dizer o velho Cazuza, é muito, muitíssimo diferente. Qualquer rábula mais astucioso, qualquer adversário de menores escrúpulos, disposto a comprar testemunhas a arrancar marcos, a mentir e a fraudar, esse é que leva a palma da vitória. Ou melhor, leva a vitória mesma, porque os triunfos dessa natureza não têm palma de espécie alguma.
Só tenho uma alternativa. Ou anestesiar a alma, para descer também ao mundo das transigências, ou deixar tudo isso, internar-me no campo, largar-me em disparada, como um homem fora do seu tempo.
Eu tinha, como já disse, da existência de um feito, a ideia de um organismo ou de uma construção. Não suportava o traumatismo de certas mutilações ou a falta de simetria de determinadas linhas. Reconheço hoje o disparate de minha ingênua e louca imaginação. Mas insisto pelo menos na ideia de que uma ação tem muito de uma obra de arte. Desde a autuação da peça inicial, da costura das folhas que vão acrescendo, até mesmo a contextura moral da situação, se assim me posso exprimir. A própria mentira, a astúcia, a fraude, o crime, tudo isso ficaria bem dentro do feito, porque seria afinal punido e sacrificado, em ‘holocausto da verdade’. De tudo resultaria, afinal, o triunfo do direito e da justiça. Extrairíamos uma lição moral e um ensinamento útil, como nas fábulas de Fedro e La Fontaine.
Mas, qual, meus amigos – é necessário repetir. Se a verdade não for defendida com os mesmos recursos da mentira; se a justiça e o direito não tiverem advogados mais ágeis que o crime e a violência, estes é que passam a ditar as normas e os julgamentos. De tal modo se confunde tudo, que nem sabemos, ao final, com quem estava a boa causa.
De mim direi, sem querer ser mais puro nem melhor do que ninguém, que não pretendo praticar indignidades, no exercício da profissão. Mas também não estou disposto a ser esmagado, engolido como um cordeirinho inocente e inerme. Ah, isso não!
Sei que é difícil estabelecer essa barreira, definitiva e visível, entre os processos honestos e as chicanas. Mas me valerei, quanto possível, da luz que Deus me der.
E o que ora escrevo me fortifica nessa deliberação. O ato de escrever é para mim um ato de afirmação e pureza.
Sinto que minhas reações íntimas não têm estado à altura dos acontecimentos – dos crimes e das insolências de Paulino Correia. Mas, que fazer, neste momento, senão confessar a inibição em que me encontro? – Os fatos, ainda agora, estão mais poderosos do que a minha sensibilidade.
Quarta-feira, 12
Outra coisa que estou estranhando em mim mesmo, no exercício da profissão, é como o advogado que sou, começa a exterminar o jurista que desejara ou mesmo começara a ser. É com medo que agora consulto alguns dos meus tratados. Medo de minha própria sombra. De cada um daqueles sinais ou daquelas anotações que eu fizera à margem dos livros, salta-me uma sugestão e um compromisso. Cada traço da minha letra apressada e nervosa á a chave de ideias que me propusera desenvolver em teses ou dissertações.
Agora, quando procuro qualquer desses livros, é em busca de uma opinião ou doutrina que venha corroborar um ponto de vista preestabelecido, que venha amparar o direito de meu constituinte.
E nesses momentos, quando procuro essas opiniões favoráveis como quem procura uma caça, e até se aborrecer por não encontrá-la – é nesses momentos que vou dar com os olhos, como se fora uma atração do abismo, naquelas anotações e naqueles sinais, tantas vezes em desacordo com minhas opiniões de agora.
A princípio, procurava meus cadernos, onde aqueles apontamentos são melhor desenvolvidos. E notava que, ao escrevê-los, o que me preocupava era a solução mais justa, a doutrina que melhor protegesse o interesse social. Agora, o que quero é forçar o Direito, violentar a opinião dos tratadistas, para que eu vença na causa.
Largo os livros e os cadernos.
Mais não resisto e volto a examiná-los. Até parecem galhos murchos. E galhos tanto mais terríveis para meus olhos, quando vejo que ainda conservam, por trás de sua morte aparente, reservas de vitalidade. Um olhar de simpatia e ternura os umedecesse – um olhar daqueles de que não me considero mais digno nem capaz – e rebentariam os novos e viçosos gomos.
Decididamente, a profissão matou o Direito. A profissão, apenas, ou também a terra? Ou sou eu mesmo que estou matando e destruindo tudo, e jogando a culpa para seres inocentes?
Quem responde a todas as minhas perguntas? Quem me ajuda a transpor o meu próprio abismo?
Se ao menos vencesse de verdade! Se ao menos trancasse na cadeia esse afoito Paulino Caboclo, símbolo, na minha imaginação, de toda negação do direito e da justiça!
Pensamento puxa pensamento. Palavra puxa palavra. Sinto-me acorrentado, antes mesmo de imaginar ou de falar. Sou um escravo de forças latentes. Do sangue de meus avós e dos fantasmas que carrego involuntariamente, como companheiros da existência. Deve haver uma herança do pensamento. Percebo perfeitamente, na minha imaginação e na minha memória, coisas que nunca vi com meus olhos. Tenho, assim, a impressão de que meus erros não são propriamente meus.
Sei que estou um pouco confuso. Mas não posso deixar de escrever estas palavras. Sofro uma angústia de quem é arrastado em todas as direções, impulsionado pelo passado, atraído pela terra, esmagado pela vida. Só não sigo a direção que me tracei, a minha própria direção. E, no entanto, era tão bela e tão simples.
Para não parecer um louco, direi simplesmente que meu pensamento está em convulsão. Tudo quanto pensei na vida, saiu-me diferente. Não no seu sentido material. Não no êxito da profissão. Se trabalho, é por amor ao trabalho, por uma espécie de higiene mental, de respeito a mim mesmo. Os haveres do velho Cazuza, que ficarão todos para mim, que já estão à minha disposição, deixam-me tranquilo quanto ao futuro. Não tenho ambição de grande fortuna.
Recordo agora certa fase da vida acadêmica, em que eu imaginara um mundo especial para mim. Um mundo em que lutasse, já certo de vencer e brilhar. O resto da humanidade seria apenas uma plateia. Meus próprios adversários não existiriam senão para realçar os meus triunfos. Tudo como numa gravura, bela e colorida. E eu no plano mais alto, diante de uma assistência boquiaberta. E então, como um jurista atuado, ditaria a regra mais justa, o ensinamento mais sábio e brilhante. Toda a minha vida seria um belo discurso, perante um auditório deslumbrado. Os apartes do meu contendor seriam apenas a chave para a torrente da minha eloqüência. É verdade que minhas veleidades de glória também se confundiam com a vitória da causa mais justa.
Embora desapontado, reconheço que a vida é quem está certa.
Procuro por vezes recorrer aos filósofos, mas eles também não me socorrem. Não direi que não os compreenda. Afirmarei, porém, que nem com eles consigo salvar-me. Participo de suas aflições com busca de verdade.
Deve haver pouca diferença entre o filósofo e o louco. Entre o artista e o louco. Entre o louco e todo individuo que procure dominar a essência das coisas.
Passo a mão pela cabeça, que me dói. Como conciliar essas ideias com outras que adoto, no esquema de convicções que tracei? Reajo e grito:
- A coerência é uma renúncia criminosa. Tenho o dever de aprender, em cada momento, a verdade que passa.
O gato Mourisco, com um salto, bateu meio dia na minha janela. Só então notei que eu falava sozinho.
Agora, calado, comecei a ouvir a voz da fome. Mas a fome também calou-se. Quem falava era o gato:
- ‘Que preparaste para meu almoço?’
- Filosofia, meu amigo, e da pior espécie.
- ‘Ah, Filosofia! Vais fundar algum sistema?’
- Não. Todo sistema tem conclusões forçadas; pregos, meu amigo, pregos e escoras, para manterem a construção. Devo pairar a cima de todos os sistemas e percorrer as escolas. Em lugar de princípios, indagações. Tenho o dever de repetir-me, como tenho o de emendar-me, até encontrar a minha verdade. Cada um de nós tem a sua verdade, ou as suas muitas verdades, de acordo com diferentes momentos.
Mourisco concordou e aquietou-se. Depois, fez um gesto assim de quem diz – ‘Filosofia não dá almoço a ninguém’ – e, com outro salto, desapareceu.
Eu ainda quis prosseguir, mas as tripas gritavam com voz de aço.
Vi que o gato tinha razão e também fui almoçar, não sem acrescentar:
- O homem é escravo do pensamento e o pensamento é escravo da fome.
Quinta-feira, 13
A companhia de Pacatonha, embora me seja útil e às vezes até divertida, há dias em que se torna também incômoda. A velha só fala em cavalo preto. Pega-se com todo mundo para rezar, recorre a todos os santos e a todas as bruxas do seu conhecimento, para que não chegue à nossa terra esse terrível animal do inferno.
Deve ter sido muito forte a impressão de sermão de Frei Henrique, que ele ouviu em criança. O pregador falara certamente com voz cavernosa, nesse tom misterioso e obscuro de todos quantos fazem predições. E a pobre velha, rememorando aquelas velhas palavras, agora as associa ao automóvel, de que tanto se fala na cidade e que só ainda não chegou porque a estrada não está em condições.
Precisei tomar cuidado especial com minhas pratas e níqueis, pois minha companheira de casa, ordinariamente tão honesta, apesar de avarenta, não pode ver moedas, que não surrupie algumas para levar à caixa das almas. Só mesmo um estado medonho de terror a levaria a proceder assim. Às vezes, faz gosto vê-la em aflição, andando do interior do quintal, onde fica seu quarto, até a sala da frente, onde está minha mesa de trabalho. Nesses momentos, parece que ele não me vê. Separa as moedas, em pedaços de panos diferentes. Tira os cobres para um lado, as pratinha para outro. Os níqueis ficam num terceiro grupo. Mas logo desfaz a arrumação. Ouço-a então dizer: ‘Não, está muito: basta esta’. Põe o xale na cabeça. Já no meio da rua, volta, vai ao seu quarto. E nisso leva horas.
Um desses dias, inventou que estavam me chamando no quintal. Eu fui, mas, não havendo ninguém, voltei imediatamente. Surpreendi-a então a procurar qualquer coisa nos meus bolsos. Fiz que nada via, pigarreei e entrei na sala tranquilamente. Apesar disso, Pacatonha perturbou-se um pouco, perguntando que horas eram e saiu precipitadamente para a igreja.
Somente agora compreendi o alvoroço com que ela, alguns dias atrás, se reconciliou comigo. A velha se aborrecera desde a brincadeira do juramento. Passou dias sem me dar palavra, depois foi falando indiretamente, até que por fim se dirigia mesmo à minha pessoa. Mas só o fazia em caso de necessidade, e sempre desconfiada.
Eu não me havia percebido bem de sua mania, de seu pavor do ‘cavalo preto’, embora a ouvisse, mais de uma vez, falar sobre isso. Também a crise não assumira as proporções atuais. Mas, como seu que o dinheiro é uma chave milagrosa, que abre as mais diversas e variadas portas, eu o aplicara em Pacatonha. Chamara-a e, dizendo que ainda não lhe havia dado nada, desde que ela me servia, passara-lhe umas pratinhas de mil réis. A velha pegou nas moedas e me olhou abismada. Notei que ela ligava a situação a qualquer outra preocupação, no fundo do seu espírito. Abraçou-me as pernas. Tive a impressão de que ela ia levantar-me. Mas logo me soltou, olhou novamente as moedas, como que se certificando da realidade. Tudo no seu semblante era felicidade. Então agarrou-me as pernas de verdade e levantou-me com entusiasmo. Tive que tomar cuidado para não me desequilibrar. Logo depois Pacatonha dirigia-se para o seu quarto, beijando as moedas e dizendo coisas incompreensíveis.
Sábado, 15
O juiz Adriano Pereira está aborrecido comigo. Isso me choca e confrange. Tudo tenho feito para não magoá-lo, para suportar com paciência a morosidade de seus despachos. Mas soube agora que seu estado é quase de desespero. Considera-se afetado do coração, e o grande responsável, no seu entender, e principalmente no da mulher, não é outro senão eu. Alegam ambos que estou forçando o bom homem a trabalhar acima de suas possibilidades, movendo de vez em quando uma ação nova, requerendo uma diligência, etc. Isso me abate profundamente, sobretudo pela injustiça que encerra. Nada tenho feito de extraordinário, que exija do juiz um esforço tão grande.
O que parece é que o homem não é capaz de esforço algum. Em termos mais próprios, ele despende grandes energias, porém mal empregadas. É o que tenho observado em meus contatos, mais ou menos constantes, com o juiz da minha terra.
O homem começa por não ter nenhuma organização. Na sala grande de sua residência – sala ao mesmo tempo de espera e de visita – os montes de jornais sobem como colunas por todos os recantos. Todos os dias o Dr. Adriano faz propósito de rever essas folhas, para recortar artigos de doutrina jurídica ou julgados dos Tribunais e assuntos religiosos, principalmente a vida dos santos. Mas nunca realiza seus projetos, enquanto os jornais se acumulam, aumentando as pilhas, dia a dia. São coleções do Diário Oficial, de A Razão, do Diário de Pernambuco, do Gazeta de Notícias, etc. grande parte dos vencimentos do juiz é gasta na assinatura desses diários, afora outros jornais e revistas religiosos.
O Dr. Adriano costuma escrever, à margem dessas folhas, breve anotações: Lido; a rever; Vida de Santo Agostinho, pág. 7, etc. Perde com isso um tempo enorme. Às vezes se engana, chama a mulher, aflito, e ambos passam horas a procurar um jornal que está debaixo de um livro e se extraviou mesmo, para nunca mais ser encontrado.
No centro da sala fica um grande consolo de mármore. É aí que o juiz escreve. O mármore tem constantemente dois dedos de poeira. Também os montes de jornais, pelos cantos, estão “protegidos” por um grossa camada de pó e mofo, o que de certo modo facilita a missão de Dr. Adriano, de se ver livre, um dia, daqueles fardos incômodos.
O curioso é que o homem tem uma grande capacidade de leitura. O que lhe falta é capacidade de trabalho, para qualquer ato de sua responsabilidade e atinente a suas funções. Nesses casos, acabou-se o juiz. É todo dúvidas e interrogações. Consulta o Dr. Portela, juiz aposentado e chefe da oposição; consulta o Major Gabriel, rábula que, não tendo propriamente cultura, tem uma intuição jurídica e uma capacidade de interpretação extraordinária; escreve para desembargadores e advogados na Capital, para juízes de outras comarcas. Escreveria para o mundo inteiro, se fosse possível. E, no fim de tudo o que todos esses assessores dizem pouco adianta a Adriano Pereira, que sabe, mais do que muitos deles, os segredos da ciência jurídica. O que não sabe é confiar em si mesmo.
Algumas vezes, quando termina suas consultas a toda essa gente, o caso já está resolvido por si mesmo, pela ação do tempo ou pelo acordo das partes.
Até hoje o tribunal não reformou nenhuma de suas sentenças. É verdade que prefere poucas, e depois de uma batalha mental que deve abalar as energias todo organismo.
Queixam-se os escrivães, amargamente, de que os feitos não são julgados, com prejuízo para eles, que se vêm assim privados das custas. Recorrem ao chefe e esse vai jeitosamente ao compadre juiz. Adriano perturba-se um pouco e diz:
- Que cachorros! Já receberam as custas, duas ou três vezes, inclusive a minha parte, e ainda se queixam. Que cachorros!
Mas não vai nessas palavras nenhum sinal de rancor. Eles tem um tom paternal. É como se chamasse o filho de maroto, impossível ou traquinas.
O major Gabriel insiste, sempre cautelosamente, para não magoar o bom homem. Não são apenas os escrivães que reclamam, mas as partes, principalmente. Existem inventários prontos, há mais de dez anos, faltando apenas o julgamento da partilha. São poucas palavras: “Julgo por sentença”, etc. Data e assinatura.
- Está bem compadre, está bem. Vou começar na terça-feira. Julgarei todos, sem faltar um.
Mas essa terça-feira nunca chega, e os outros se acumulam, uns sobre os outros. O quarto onde se encontram, junto com à sala de visitas, foi outrora de dormir. Mas os processos o foram invadindo, invadindo, até que Dona Nana não suportou mais o cheiro de papel velho e mudou a cama para outro quarto, junto à sala de jantar. Parece que prossegue a invasão dos bárbaros. Já atravessaram a sala de jantar, detiveram-se um pouco no pequeno corredor e quebraram à direita, em busca da camarinha.
Também perde grande tempo com as atividades religiosas. É presidente da Conferência de São Vicente de Paulo e não se contenta com a coleta de esmolas. Todos os domingos lá está, depois da missa, a fazer longas preleções sobre os dogmas da Igreja, sobre a vida dos mártires e Doutores da santa religião. O vigário velho, que não articula duas palavras em público – e dizem até que, na mocidade, ainda era pior – não deixa de fazer por fora o seu comentário despeitado:
- Bobagem do Dr. Adriano, bobagem. Diz a mesma coisa que eu digo. Só tem diferentes as palavras bonitas. Mas isso ele tira dos livros. Qualquer um querendo, também pode tirar.
O nosso herói também gosta de conversar. Qualquer pessoa que vá à sua casa, não sai senão depois de dar um prosinha. Às vezes Adriano está deitado na rede, na sala da frente, balançando-se levemente, com o indicador no chão, um jornal sobre o grande ventre. A pessoa chega, começa a contar a sua história ou fazer a sua queixa. Quando menos espera, o homem está roncando fortemente. A visita espera, espera, até perder a esperança. Levanta-se e vai embora. Quando o juiz acorda, fica meio perturbado e pergunta:
- Ó Nana, quem foi que esteve aqui?
Nana está ocupada lá para dentro, não ouve a pergunta. Adriano recomeça a leitura do jornal e depois, cansado, adormece outra vez. As galinhas entram na sala, devagarzinho, começam a beliscar os jornais amontoados, e busca de uma aranha ou de uma barata, e a vida continua. Lá fora, na calçada de pedra, o sol canta, como uma cigarra grande e luminosa.
Com todo esse envelhecimento precoce, o homem ainda não tem cinqüenta anos de idade. Creio que lhe falta um regime, não apenas alimentar, mas também um regime mental, que suprima de sua vida pelo menos metade das atividades supérfluas, quase que diria infantis.
E, no entanto, como sabe Direito, principalmente Civil! Ainda não está muito familiarizado com o Código. Mas, em torno dos grandes institutos – Posse, Domínio, Obrigações, Prescrição – o homem disserta, como melhor não fazem muitos dos professores de Recife. Tenho-o provocado algumas vezes, para satisfazer minha curiosidade, menos em torno dos seus conhecimentos, de que não duvido, do que de sua personalidade, tão cheia de surpresas. O jurista está sempre pronto na réplica. Às vezes a memória parece falhar. Vai a uma das estantes, altas e envernizadas de amarelo tira o volume exato. Abre, examina. Raramente leva mais de cinco minutos nisso. Fecha o livro e prossegue na preleção.
O menor caso concreto, porém, que dependa de um despacho seu, o aflige cruelmente. Tudo para ele é dúvida e abismo. Não consegue encontrar o livro apropriado, teme que o tachem de injusto. Mais do que isto: teme mesmo praticar a injustiça. Parece ser este um dos segredos de sua personalidade.
Tenho a impressão de que Adriano Pereira não nasceu para juiz, advogado ou promotor. Não tem vocação para nada que implique, propriamente, na prática e na aplicação do Direito. Deveria ser um grande professor, a extrair das leis, com a perícia de um artista requintado, toda a sutileza do preceito, todo o espírito da norma. Mas, nada de contato com o concreto, com o choque de interesses, com o sangue das vítimas ou a fúria dos criminosos.
Presidindo o júri, faz por vocês longas explanações sobre as origens e os fundamentos do tribunal popular, sobre o dever do cidadão convocado para julgar seu semelhante. Invoca as opiniões contrárias, analisa-as e contesta. Falando para quem? Certamente para si mesmo ou para o auditório de estudantes que ele talvez imagine, na frustração do seu sonho de professor.
Há muitos anos que planeja ir à Capital, fazer umas roupas e comprar uns livros novos. Poderia pedir os livros pelo correio, mas não quer. Seu grande desejo é ficar o dia inteiro numa livraria, escolhendo à vontade.
Creio que não irá nunca. Morrerá aqui mesmo, aposentado, se chegar até lá.
Começo a inquietar-me com as preocupações do meu juiz. Afinal, por que ele não se aposenta, ou não tira uma licença para tratamento de saúde? Vou vê-lo, logo que possa. E depois conversarei com meu pai, com o chefe e com o Dr. Gouveia. Só não posso admitir que atribuam a mim uma culpa que não tenho. Então, somente porque exerço minha profissão, requerendo um juízo, estou matando o Dr. Adriano Pereira? Ah, isso não. Vamos esclarecer esse caso, de uma vez por todas.
Quarta-feira, 19
Converso diariamente com Maria Augusta, em sua própria casa. Fui suprimindo aos poucos as intermediárias – as filhas do escrivão – e estas começam a queixar-se. Por uma espécie de gratidão, marcamos de vez em quando um encontro em casa delas, e isso dá imensa felicidade a Josefina e Adélia.
Minhas conversas com a minha amada, no ponto a que chegou o nosso amor, não menos fontes de alegria do que de sofrimento. Não é que ela procure contrariar-me em nada. Antes , é toda bondade e ternura. Não direi que procura adivinhar os meus desejos, porque os adivinha naturalmente, independente de qualquer esforço.
Mas entre nós existe um abismo. Esse abismo é Fabio Noronha. Não me posso conformar com o pensamento de ser genro de um jogador, já cheio de dívidas na cidade. É um profissional que se desmoralizou perante seus clientes. Nada vale a sua palavra, marcando dia para concluir um serviço. Atualmente, parece que nem mais os inicia. Não sei como consegue viver o desgraçado. Parece que a filha está provendo à manutenção da casa. O número de alunas aumenta sempre, e dizem que realmente ensina muito bem, pintura e trabalhos manuais.
O que é certo é que, nos momentos que deveriam ser de maior ternura, vejo por trás da moça, com seu bigode ralo e chamuscado, com suas desculpas de mal pagador, a figura de Fábio Noronha. Creio assumir então um aspecto de terror ou mesmo de repulsa, porque noto no rosto da minha amada uma expressão, a princípio de surpresa, mas já agora de inquietação e de sofrimento.
Nos primeiros dias, ela costumava perguntar:
- Que é, Márcio, que você está vendo em mim?
- Nada, Maria Augusta, são coisas que estou pensando, a propósito de minhas lutas. É um processo complicado que tenho de estudar.
Com a repetição, porém, o seu instinto de mulher começou a compreender que não se tratava disso. Pensava ela, então, que teria abusado do pó de arroz e do corante; que estava com qualquer sujo no rosto. As vezes, levantava-se e ia ao espelho. Não via nada. Agora não faz mais isso. Caímos em longo silêncio, ao meio do qual duas lágrimas, que ela quer mais não pode disfarçar, correm-lhe ao longo da face. Dá uma desculpa desajeitada, e logo voltamos ao silêncio, que só se interrompe quando me despeço para vir dormir.
Dona Eulália, que geralmente se encontra na sala quando eu chego, conversa um pouco comigo, e depois se recolhe, auxiliada pela filha. Ficamos a sós. Esses momentos, que a princípio eram de grande felicidade para mim, começam a ser de sofrimento. São uma espécie de hora de julgamento, constantemente adiado. E no entanto, durante o dia, mesmo em meio a meus trabalhos mais importantes, anseio por que chegue aquela hora, em que tenho de explicar-me, embora também saiba que não tenho coragem de dar explicação.
Explicar o quê? Dizer à moça que a amo, amo loucamente, mas tenho vergonha de seu pai, uma vergonha e um nojo invencíveis, e por tanto não posso casar com ela?
Há poucos dias, tentei falar ao dentista. Ele passava em frente a minha casa e eu o chamei. O homem sentou-se e disse que estava a minhas ordens. Notei na sua atitude que ele esperou um pedido de casamento. Por Deus, como o notei. Fiquei desarmado. O que eu queria, em verdade, era dar-lhe conselhos, pedir-lhe que deixasse o maldito vício. Mais do que isso, eu pretendia emprestar-lhe dinheiro.
Não lhe disse nada. Falei do meu dente, cujo tratamento ele iniciara e não terminara. Dr. Fábio fez assim um ar de desprezo e decepção e disse simplesmente:
- Ora, Doutro Márcio, vá lá em casa qualquer dia e terminaremos isso.
E largou-se, apressado, para os fundos do brilhar de Gasparino.
Por vezes me pergunto se não havia um meio de eliminar-lhe a presença, sem lhe fazer qualquer mal, internando-o, por exemplo, num Hospício, como doente mental. Mas, que direito tenho de fazer isso? Como justificaria esse gesto, em relação a um homem aparentemente são? A que extravagâncias leva o amor!
Na cidade, sei que o meu namoro é o assunto de todos. Quando não estão comentando as questões e os crimes do Caboclo, estão falando nos meus amores. Toda a cidade se julga com o direito de opinar.
O casamento, num lugar pequeno como este, pertence menos aos namorados do que à sociedade local. O matrimônio é uma espécie de peça, que vem compor o arranjo coletivo da cidade. deve ser, primeiro que tudo, “igual”. Certos rapazes só podem casar com determinadas moças. É só como “da certo”. Os noivos devem ser da mesma camada social. Ele há de ser mais alto e mais velho. Um dos dois pode ser mais rico ou mais pobre. Isso não tem importância. Mas, se a moça for rica e o noivo pobre, este há de ser um titulado, um Doutor. Tudo dentro de certos padrões. Nada que choque, que escandalize, que desagrade às regras do meio.
Depois, têm-se em considerações as famílias, os pais. E aí é que eu naufrago. Fábio Noronha não é um sogro a altura do Dr. Paulo Márcio da Silva Lima, advogado e filho de José Mamede da Silva Lima, o velho Cazuza, fazendeiro rico e presidente do Conselho Municipal. Pouco importa que a moça mereça o casamento e seja capaz de fazer a minha felicidade. Isso não tem a menor importância. Há o obstáculo do pai.
O mais grave, o mais acabrunhador para mim, é que vejo tudo isso com absoluta lucidez, ao escrever estas notas. Minha coragem só se encontra no isolamento, com meus pensamentos, minha pena e meus livros. É só pensar em qualquer ação, qualquer atitude de repercussão social, e logo me deixo dominar pelos mesmos preconceitos, pelas mesmas injustificáveis superstições que analiso e destruo, no fundo de meu pensamento.
De outro modo não se justificaria que eu visse sempre a sombra de Fábio Noronha por trás da minha amada, tivesse-lhe pavor, como se fosse um obstáculo moral intransponível.
Maria Augusta poderia contar em seu favor com uma situação privilegiada. Ela é uma moça ‘da Capital’. Isso no sertão é tudo – ser da Capital. Quando qualquer rapaz da terra casa com uma mossa da Capital, e desde que ela seja razoavelmente vistosa e educada, então aquele rapaz passa a ser uma espécie de herói municipal. ‘Casou na Capital’ – é o que todos dizem, cheios de admiração e agradecimento.
No meu caso, porém, é diferente. A moça é do Rio – o que lhe devia dar maior prestígio. Mas está morando aqui, de qualquer modo já faz parte do meio. Todos sabem que é pobre e trabalha para sustentar a casa. De modo que a vantagem, que porventura poderia levar, está prejudicada por outras circunstâncias.
Quanta coisinha miúda!
Preciso vencer esses preconceitos, bem o sei. Mas preciso vencê-los, primeiro que tudo, dentro de mim, e depois perante os outros. Preciso repelir as impugnações de pessoas, que nada têm a ver com a minha vida, mas se julgam no direito de intervir no meu amor e no meu casamento. Elas consideram, embora sem consciência mais nítida disso, que o fato interessa a todos, pertence à vida da cidade.
Vou reagir. Isso me humilha, isso me aniquila. Não quero naufragar nesse mar de mediocridades. Só ao mencioná-lo, sinto-me invadido por ele.
Noite
Meu conflito agora tornou-se mais sério, porque é também com o velho Cazuza. Faço tudo para não magoar meu pai. Mas também é certo que não sou senhor do meu coração. Não posso dar um desgosto ao Capitão, principalmente agora, que tenho encontrado nele todo o apoio e solidariedade, numa guerra nova, em que desejou não me ver envolvido. Meu pai não é homem de luta. Ainda que às vezes blasone sua capacidade de combate, ele é no fundo um comodista e um tímido. Se enfrenta a peleja, e com eficiência, é por um sentimento de dignidade que o eleva no meu julgamento. Mas, decididamente, é da paz e não da guerra.
Não era, pois, nesta hora que eu queria desentender-me com o Velho.
A princípio ele não dava importância ao caso. Tomava minhas “palestras” com a filha do dentista, para usar sua expressão, como uma simples diversão de homem solteiro, numa cidade sem distrações. Aos poucos, porém, foi cismando, fazendo alusões e soltando indiretas. É um de seus fracos, a indireta. Tenho que lançar isso no débito de suas qualidades.
Eu ia fazendo que não entendia nada, levava a conversa também na brincadeira. até que hoje, vindo à cidade, o Velho se impacientou e me disse:
- Já é tempo de acabar com isso, meu Doutorzinho. Já está passando da conta.
- Meu pai, este assunto é meu – respondi-lhe com firmeza.
- Este assunto é seu, como é meu e de toda a cidade. o senhor não deve estar prejudicando essa moça, uma vez que não quer casar com ela.
- Como é que o senhor sabe se eu quero ou não? O Velho então se transformou. Era a voz de trovão que voltava:
- O que! Casar com a filha de Fábio Noronha? Era só o que me faltava! Ah! Ah! Ah!
A risada foi o que me ofendeu. Vi reconstituído na sua fisionomia todo o sarcasmo da cidade, todo o desapontamento da cidade, que tinha o direito de opinar no meu casamento, com um traço novo, a recompor a fisionomia social da terra.
Não respondi mais nada. Peguei o chapéu e larguei-me para a rua.
Sem qualquer decisão consciente, encontrei-me na janela do dentista. A moça estava dando aula, de avental e pincel à mão.
- O que é isso, Márcio? Você está com a fisionomia transtornada. Diga o que foi.
Olhei para o interior da sala, duas mocinhas me fitavam, embaraçadas e curiosas.
- Não foi nada, Maria. Apenas um pequeno incidente com... com o juiz da comarca.
- Oh! Márcio, por que fez isso? O Dr. Adriano é um homem tão bom e parece tão doente... Venha tomar um pouco d’água; entre.
- Mais tarde eu volto. Preciso muito conversa com você.
Para onde ir agora? – pergunto a mim mesmo.
Encontro o chefe, que me criva de perguntas. Faço-lhe duas, é o meio de livrar-me. Gabriel não responde, sai cantando baixinho e filosoficamente.
Quando, depois de passar pelo cartório e reler uns autos, que já sei quase decorados, voltei para casa, não mais encontrei o velho Cazuza. Fora para a fazenda. Deixara um bilhete, sem qualquer alusão ao incidente. Apenas avisava que tinha muito o que fazer. Deixava-me a benção, etc. O incidente, para ele, não tivera qualquer profundidade. Não é ele quem ama.
Sei que o Velho não gosta me magoar-me. Mas também não pode admitir a ideia de me ver casado com a filha do dentista, jogador e velhaco. Dou-lhe razão, depois lha tiro para dar razão a mim mesmo. Mas, afinal, também não sei o que é que eu mesmo quero. Meus pensamentos são todos uma grande confusão. Estou em conflito com meu pai, com a sociedade, comigo mesmo.
Não vou hoje à casa de minha amada. Mando-lhe um bilhete. Estou com muita dor de cabeça. Que ela esqueça o incidente do juiz, não diga nada a ninguém.
E agora, vou lutar contra a insônia, que é um inimigo feroz. Até a leitura, se algumas vezes o combate, outras vezes o ajuda.
Voltarei amanhã, se Deus quiser.
Quinta-feira, 20
Maria Augusta está profundamente magoada. Melhor direi revoltada.
Se eu fosse mais experimentado em analisar a natureza humana, e também não estivesse em causa, certamente lhe daria razão. Compreenderia sua situação moral com a clareza com que o vejo esta manhã. A vida é assim mesmo. Por mais que nos esforcemos para aprender certas sutilezas, elas se afastam de nós obstinadamente, com uma resistência proporcional ao nosso interesse. Mas acontece que às vezes, quando menos esperamos, o mistério se entrega por si mesmo, com uma boa vontade e um espírito de cooperação que nos deixa espantados.
É o que me acontece agora, num momento de privilegiada nitidez pelo menos para o meu entendimento.
A situação de Maria Augusta, o seu desapontamento e a sua mágoa são perfeitamente explicáveis. É porque nem sempre queremos ver as razões alheias, os pontos de vista dos outros.
Essa moça, mais cedo do que suponha, foi assumindo responsabilidades com os compromissos da casa. Mas a decadência do pai, seu apego ao jogo, não foi obra de um dia. Ela se veio acostumando gradativamente com a situação. Como filha, ainda inexperiente, nem podia prever toda a extensão do mal, nem tinha o direito de reclamar. Esse cuidado, de resto talvez inútil, devia caber a Dona Eulália. Mas esta é toda doença, bondade e silêncio. Não abre a boca para contrariar ninguém.
Por outro lado, o vício das pessoas queridas é quase sempre, a nossos olhos, um vício atenuado. Não passa de uma extravagância, de um capricho, de uma fantasia. Quantas vezes não falamos dele com certa graça, quase com elogios!
O vício também não deixa ver todo o desastre de uma vez. Tem sempre uma mentira, uma desculpa. Se é jogador, às vezes ganha, às vezes perde. Mas faz sempre uma certa confusão.
Penetremos mais fundo na situação. Apareci eu na vida dessa moça. Ela não me procurou, mesmo que tivesse porventura vontade de fazê-lo. Fui eu quem tomou a iniciativa. Sou um advogado, moço e abastado, sem qualquer defeito visível. Ora, as moças neste mundo casam muitas vezes até por casar, sem maior futuro ou necessidade. Que dizer de uma possibilidade de casamento que lhe parece vantajoso?
E não é só isso. Como que se criou, na cidade inteira, uma expectativa de casamento. São as felicitações antecipadas de uns, são as indiretas de outros. É a alegria ou inveja. O certo é que se gerou um clima próprio, uma situação diferente. A constância com que frequento sua casa, conversando com ela sem reservas, cria no meio um compromisso tácito.
Quando a cortejei, conhecia-lhe o pai. Isso não foi impedimento. Eu vinha de fora, é verdade, mas tinha o dever de pedir informações. Não olhei para nada disso, porque via somente aqueles olhos grandes e profundos, aqueles braços, aquela voz. Disse-lhe do meu amor, da minha paixão, da minha loucura.
De um momento para outro, começo a ficar calado e misterioso, vendo sempre por trás dela a figura do dentista, com o bigode ralo e chamuscado, com o baralho sempre na mão. Minha fisionomia me denuncia. Mas ela ainda não vê tudo, não percebe a causa mais profunda.
Até que um dia a verdade cruel é revelada com todas as suas cores.
Maria Pacatonha ouve minha conversa com meu pai, corre e conta tudo. Sim, não tive dúvida que fosse ela.
Sem saber de nada, vou procurar a moça. Ela não me aparece. Uma vez, duas, três. Até as aulas são dadas lá para dentro, na sala de jantar. Inquieto-me, escrevo. Ela está magoada, nenhuma resposta me dá. É o resumo da situação.
Sexta-feira, 21
Eis o que acabo de receber:
“Dr. Paulo Márcio: Meus comprimentos.
Entendo que devo tratá-lo assim, porque a estas horas nada mais pode haver entre nós.
Soube de toda a discussão havida entre o senhor e o capitão Cazuza Mamede, a propósito de meu pai e de mim mesma.
Quem se envergonha de meu pai, também se envergonha de mim. Ele é uma criatura boa e simples, vítima do destino e da injustiça dos homens. Tem o seu vício, mais esse vício só prejudica a ele mesmo.
E o respeitável Capitão Cazuza Mamede, com toda sua pureza, como vai explicar a morte de sua digníssima esposa, mãe de Dr. Paulo Márcio? Não saberá o senhor porventura que sua saudosa mãe morreu de desgosto, porque, com poucos dias de resguardo, encontrou o marido beijando uma mulata na cozinha?
Junto a esta devolvo a pequena lembrança que o senhor teve a bondade de dar-me. Felizmente, não havia tocado nela. Vão também alguns bilhetes seus.
Receba minhas despedidas e seja feliz como merece.
Maria Augusta Noronha”
Bem se pode avaliar o meu choque. Esta carta estúpida, monstruosa, é capaz de aniquilar qualquer homem.
Nada na conduta dessa moça me autorizava a prever ou sequer admitir uma explosão tão grave, tão cruel, tão desnorteante. Para proceder assim, certas criaturas não deveriam sequer vir ao mundo. Isto está fora de qualquer cálculo, de qualquer previsão.
Chego quase a pensar que um caso destes nos tira até o gosto de existir. Valerá a pena, se é para isso?
Afinal, desisto da indagação. Não adianta perguntar se a vida é boa ou má, quando estamos, de qualquer modo, dispostos a viver.
Nunca pensei que o amor fosse assim. Será que todo ele vem, de modo tão brutal, carregado de amarguras? Talvez não. Deve haver tantas espécies de amor quantas criaturas que amam. Como tudo o que me toca neste mundo, também o amor para mim devia ser da pior qualidade. Tinha que trazer todas as sombras e golpes que a vida reserva para este pobre espírito enfermo.
Nem sei o que diga. Tento trabalhar, caminhar, fazer qualquer coisa. Inútil. Gosto de ler, como outros gostam de beber ou jogar. É uma forma diferente de embriaguez. Mas agora não consigo vencer duas linhas. Para notar a dificuldade com que estou registrando estas impressões, ninguém precisaria de outro esforço que não fosse o de olhar esta página. Nem parece a minha letra. Até tenho medo que me desapareça para sempre a relativa firmeza das mãos.
Não, me Deus, não é possível!
Horas depois
Mesmo dentro da minha mágoa, não posso deixar de achar graça no velho Cazuza. Afinal, depois de tanto barulho, o homem me sai um conquistador barato de mulatas. Sim, senhor! Por isso, o Velho nunca fala em minha mãe. Evita o assunto de todo mundo. Vou apertá-lo, na primeira oportunidade. Eu perco a minha amada, mas tenho de quem me vingar.
Noite
Só agora vou voltando à realidade.
Não, Maria Augusta não precisa acusar tão gravemente meu pai. Poderia ter manifestado sua mágoa ou mesmo romper comigo. Mas, sem cavar um abismo. Seja ou não verdade o que ela diz, o certo é que disse demais.
Nunca ouvi falar naquela história, mas através de referências vagas. Tendo morrido minha mãe a tantos anos, posso dizer que sempre conheci meu pai viúvo. E nunca lhe vi aventuras ou atitudes menos respeitosas. É verdade que demorei maior parte do tempo no colégio e na faculdade. Mas, antigamente, sempre passava longas férias em casa. Só nos últimos anos é que me deixei ficar por lá, visitando usinas de colegas, conhecendo outras terras.
De qualquer modo, porém, a dúvida ficou. Maria Augusta cavou um abismo a três. Até mesmo a conduta regular do Velho, que acabo de salientar, por vezes me parece apenas uma consequência de seus remorsos, pelo que fez à minha mãe.
Tenho vontade de conversar com o chefe, com o Dr. Gouveia. Com Adriano, não. Este vive muito distante do mundo para compreender uma crise como a minha. Haveria de sair-se logo com exemplos de santos, que sufocaram a curiosidade e perdoaram, antes de conhecer a verdade.
Mas também desisto de ouvir os outros. Afinal, eles são amigos de meu pai e não meus. Como tocar no assunto, sem o Velho saber? Saberia por terceiros, o que seria humilhante para mim. Entre nós nunca houve intermediários.
Pode parecer que me esteja impressionando demasiadamente com coisas insignificantes. Dentro do meu espírito, no entanto, tem a maior importância o que acaba de ser revelado. Sinto necessidade de me esclarecer, pelo amor mesmo que tenho a meu pai. Como poderei continuar estimando o assassino de minha mãe? Por outro lado, não é justo julgar um homem – mais do que um homem, um pai – firmado somente numa acusação apaixonada, de uma moça em crise de desespero.
Não posso imaginar que Maria Augusta tenha cometido uma infâmia. Tenho conversado longamente com ela, a propósito de vários assuntos e de muitas pessoas. Nunca percebi nela sequer uma sombra de maledicência. Comenta, como todo mundo, os fatos conhecidos. Analisa-os com graça, por vezes até com ironia. Mas, nada que demonstrasse uma capacidade tão forte para a injúria, ou mesmo para a calúnia.
Sei que o fato pode ter outra explicação. A injúria não seria dela. Seria uma dessas versões que costuma correr mundo, conhecidas de quase toda a gente, mas ignoradas, por estranho que pareça, pelas pessoas mais próximas ou ligadas aos fatos. Nesse caso, quem seria o autor? A quem procurar, no insondável do tempo, como responsável pela torpe mentira?
Mentira? E se fosse verdade?
Meu pensamento é todo ele, agora, um círculo vicioso. Volto sempre para a mesma indignação, depois de percorrer todas as explicações possíveis. Como fuga, procuro afastar o problema, negar-lhe importância maior. Fuga impossível. As perguntas ressurgem com maior insistência, agora agravadas por outra interrogação mais difícil de responder. E é saber se Maria Augusta devia ter levantado a acusação, mesmo que fosse verdadeira, que lhe tivesse chegado ao conhecimento por qualquer maior.
Esta última dúvida é a que mais fortemente me fere o coração. Procuro desvencilhar-me dela e não vejo como. A reação de minha amada foi desproporcional, fora de qualquer medida, em relação ao que houvera da parte do meu pai. Mesmo que Pacatonha tivesse carregado as cores da conversa que ouvira, Maira Augusta já devia conhecer bem Pacatonha.
Pacatonha! Outra ideia agora me assalta. Deve ter sido ela que forjou a historia da criadinha. É meu propósito retira-la de casa, mas agora não posso fazê-lo, enquanto não esclarecer a verdade. Já era tempo de me ver livre dessa maluca. Agora, tenho que esperar.
Seja qual for a explicação de tudo isso, meu julgamento sobre Maria Augusta está afetado. Meu desapontamento é grande. E somente isso me impede de correr até a casa do dentista e cair aos pés da minha amada. Ah, se no seu desabafo não tivesse surgido aquela acusação contra o velho Cazuza!
Pobre velho Cazuza. Como apareces agora, diante de meus olhos, como um criminoso ridículo. Era o que faltava, esse animal de quase dois metros, com cento e poucos quilos, vermelho e afobado, beijando mulatas na cozinha, matando com isso a sua mulher, a mãe de seu filho.
Todos os meus julgamentos são agora contraditórios. Mal acabo de formular um juízo, logo o revogo, em benefício de outro, que também não dura muito. Assim, modifico a severidade com que acabo de julgar o velho Cazuza. Não, não pode ter procedido tão mal o meu bom gigante gritador.
De qualquer modo, porém, um ressaibo de ridículo ficou. Por mais que procure lavar, o cheirinho rui não desaparece. Eis o que Maria Augusta conseguiu. Além do fel, essa gotinha de ridículo.
Sábado, 22
A situação não se modificou. Como poderá modificar-se? – é o que penso a cada instante. A iniciativa de reconciliação não pode ser minha, que fui o ofendido, juntamente com meu pai. Só poderia ser da parte dela.
O problema não consiste apenas em destruir a acusação formulada contra o meu pai, para continuidade de minhas boas relações com ele. Trata-se também de uma reconciliação honrosa com Maria Augusta. Uma espécie de esponja providencial, que apague tudo, como se não passasse de pesadelo. Foi o que descobri hoje no meu espírito, essa ânsia de acomodação e apaziguamento. Cheguei até a sonhar que não houvera nada, que a realidade era um sonho e vice-versa.
Tantos pesadelos que tenho, por que não tive aquele?
Antes dessa crise tão forte, o que havia era a oposição do velho Cazuza. Ora, essa eu iria vencendo aos poucos, ajeitando o velho até convencê-lo. Sei que o capitão é louco por mim, tanto quanto eu... quero voltar a ser por ele.
E se eu esquecesse Maria Augusta, desse tudo por terminado, como ela propôs em sua carta?
Seria muito bom, se estivesse ao alcance de minhas forças. Mas a paixão é a mesma, talvez até mais violenta, diante dos ataques que recebeu. As razoes de minha consciência são umas; as do meu coração, outras bem diferentes. Não quer isso dizer que eu pretenda sacrificar uma diante das outras. Se tivesse resolvido isso, do pensamento à ação seria um pulo. A verdade é que não resolvi nada. Estou esperando o auxilio dos deuses, ou do acaso, que tantas vezes é o instrumento de seus desígnios.
O pior é que não tenho com quem conversar. Falta-me um colega, um amigo capaz de me compreender e aconselhar. Sei que não podemos esperar muito dos outros. Somos nós mesmos que resolvemos nossos problemas. Mas, às vezes, uma palavra, uma sugestão mostra o caminho que está à nossa frente e não podemos ver.
Poderia falar com Claudio Maia. Mas, que sabe Claudio de amores? É bastante moço e estouvado, para ter qualquer coisa útil a dizer-me. Anda muito preocupado com discussões de religião.
Como seria bom, num caso como este, se pudéssemos separar as situações! Primeiro resolveríamos um caso, depois outro. Mas a vida não espera. O mundo marcha todo de uma vez. Além da moléstia principal, tenho de haver-me também com as suas complicações.
É assim que me encontro, mergulhado na paixão, na revolta e na dúvida.
Onde a saída?
Tarde
Na cidade já se começa a falar no rompimento da moça comigo. Dizem que tivemos uma discussão violenta por motivos de ciúmes. Não esclarecem se os ciúmes eram meus ou dela.
O boato é confirmado, de certo modo, pela minha ausência da casa do dentista, notada por todos.
Tenho de procurar uma saída urgente. Sim ou não. Confirmar ou desmentir. Não posso continuar nesta situação equivoca, dando desculpas infantis. Sim, tenho de dar desculpas, e muitas. Um caso de amor, nesta terra, como creio já haver escrito antes, não interessa apenas aos dois namorados. É interesse geral. Faz parte da vida da cidade, cujos habitantes se julgam com direito de indagar, insinuar, aconselhar, como se tratasse de questões suas.
Deve chegar amanhã o velho Cazuza. Meu grande esforço é no sentido de preparar-me para recebê-lo naturalmente, como se nada houvesse acontecido.
Uma coisa já está assentada. Não sou juiz nomeado para descobrir amores passados de ninguém. Meus direitos ou meus deveres de filho não me levam a isso. Decididamente, não vou apurar nada, senão até quanto interesse as minhas relações com Maria Augusta. Quanto ao Velho, nada a indagar ou esclarecer.
O diabo é a gotinha de ridículo, que continua fazendo cócegas.
Domingo, 23
Quase nunca acontece as coisas como tememos. Acontecem, sim, outras bem diferentes, fora de qualquer previsão de nossa parte.
Foi o que se deu hoje. O que mais eu receava era enfrentar o velho Cazuza, precisamente depois da carta de Maria Augusta, em consequência da qual me ficara no espírito, quanto à conduta de meu pai, uma duvida incômoda e persistente.
Mas ocorreram fatos bem diferentes, que mudaram a fisionomia daquele temido encontro.
Ontem à noite, depois de ter escrito ligeira nota nesse caderno, fui deitar-me, bastante cansado do estudo de papeis referentes à ação de divisão e demarcação, que deverei mover dentro de pouco tempo. A divisão da data envolve também questão de limites com outro Estado, e isso complica mais a situação. Tenho de pedir a situação de confinantes daquele Estado; não há remédio.
Estava, pois, cansado, embora insone. Não haviam decorrido 15 minutos do momento em que me deitara, quando notei na calçada desusado momento. E, no meio da conversa, algumas palavras pareceram bastante claras: “Acho que não escapa. Mas também, coitada, leva a vida da cama para a cadeira, da cadeira para a cama”.
Abri a janela. Eram pessoas conhecidas que passavam. Logo me informaram que Dona Eulália, esposa de Fábio Noronha, estava muito mal. O Dr. Gouveia já se encontrava lá.
A casa do dentista fica na mesma rua da minha, mas lá muito adiante, depois da igreja. Nossa rua é a mais comprida da cidade.
Fiquei à janela, olhando o movimento. Aquilo era, senão uma festa, pelo menos uma novidade para a terra. As distrações, aqui, são os casos reais e não os representados pelos recursos da arte, que estes não existem. Rarissimamente aparece um circo ou se inventa uma cavalhada. Temos de nos distrair com a realidade, venha ela sob a forma de riso ou de dor.
Eu também me distraia, mas de longe. Tinha razões especiais para lá não ir. Já me preparava, pois, para fechar a janela, quando se aproxima o escrivão Florêncio de Albuquerque.
- Doutro Marcio, não sabe o que há na casa do Dr. Fábio?
- Soube agora, seu Florêncio.
- E não vai até lá, Doutor Márcio?
Fiquei um tanto perturbado. Não podia esperar uma interpelação assim. Respondi gaguejando.
- Irei depois. Deixe passar mais a confusão.
- Não há confusão nenhuma, Doutor – disse o homem, com gravidade – Vá se vestir que eu espero pelo senhor.
Vesti-me como um autômato. Naquele momento, fosse uma criança que me desse a ordem, eu a cumpriria sem hesitações. Não direi que estava louco pela oportunidade. Seria uma infidelidade contra mim mesmo. Mas é que, na circunstância, a carga que me pesava no espírito tinha de aliviar-se, mesmo sem qualquer deliberação de minha parte, através da primeira válvula que surgisse. Creio conhecer um pouco meu temperamento. Eu não provocaria um pretexto para rever Maria Augusta, mesmo porque nada tinha a dizer-lhe. Acredito até que repeliria qualquer situação criada e que me parecesse artificial. É meu dever proclamar a honestidade de meu espírito. Mas, diante de uma situação real, senti-me impelido para o mistério e a aventura.
Vesti-me às pressas e acompanhei o escrivão.
Fábio Noronha conversava calmamente, na sala de visitas, com o major Gabriel, o promotor e a senhora deste que, por sinal, falava mais alto do que o momento comportava. O Dr. Gouveia tomava o pulso da doente, no quarto que dava para a sala. De vez em quando lhe fazia ligeira pressão nos olhos. Depois de alguns minutos, levantou-se tranquilamente e veio com dificuldade até a sala, pois era grande p número de pessoas que se comprimiam no quarto.
- Não tem perigo – disse o Doutor. – Foi uma crise nervosa. O pulso está bom, o coração é forte.
E, dirigindo-se para o dentista:
- O senhor mande sair aquele povo de dentro do quarto. Não se pode nem respirar. Levo minha vida a explicar isso aqui e ninguém quer compreender.
Fábio Noronha foi ao quarto e, com voz quase sumida, conseguiu afastar algumas pessoas. Mas, dentro de poucos instantes, voltava a aglomeração. Foi então que o médico não se conteve.
- Tudo pra fora! Só fica aqui seu João da Farmácia, porque está me ajudando. Fora, já, todo mundo!
Não ficou ninguém. Dispersaram-se os curiosos entre a sala de visitas, o corredor e a sala de jantar.
O Dr. Gouveia é o melhor dos homens, mas, quando ‘se espalha’, não há quem o junte. Isso é sabido na terra. Possui um ouvido milagroso. Em moléstias infecciosas, tem levantado da cama pessoas tidas como mortas. ‘Em febre – diz o povo da cidade – ele é um condenado’.
Para toda a casa do dentista espalhava-se um cheiro de éter, óleo canforado e suor humano.
Eu fiquei a um canto, agora conversando com o dono da casa. Em certo momento, notei que a filha mais velha de Florêncio queria falar comigo. Aproximei-me e ela disse:
- Lá dentro estão lhe chamando.
Senti um sobressalto, confesso lealmente que, embora, em última análise, atraído por Maria Augusta, até então não havia lembrado dela. A própria doença, o esbregue de Dr. Gouveia, o cheiro de éter, óleo e suor humano – tudo isso absorvera a atenção.
Entrei no quarto onde ela se encontrava, sentada numa rede. O rosto estava coberto com um pano branco e parece que chorava. No quarto estava a senhora do Dr. Gouveia, as filhas do escrivão e a empregada da casa, que servia café.
Aproximei-me da rede. Não sabia o que dizer. Adélia, a filha mais moça do escrivão, disse com alvoroço.
- Pronto, Maria Augusta, Dr. Márcio está aqui.
Maria Augusta estirou-me a mão em silêncio. Também apertei a sua, sem articular uma palavra. Trouxeram uma cadeira, sentei-me.
Depois de alguns instantes a moça falou:
- Márcio, pelo amor de Deus, me perdoe.
Novamente afagou o rosto no lençol branco.
As palavras, naquele momento, não tinham poder nenhum. A única voz que eu percebia era a sua mão, apertando a minha.
Há coisas na vida que a gente não sabe bem explicar. Mas confesso que, ao deixar a casa do dentista, já quase meia noite, eu levava a impressão de que o doente não era Dona Eulália, mas a filha, professora de bordado e pintura, Dona do meu coração.
Segunda-feira, 24
Meu encontro com Cazuza Mamede careceu de qualquer importância. O Velho veio ontem ligeiramente, à cidade, comprar arame e outras mercadorias de que estava necessitando na fazenda. Não quer perder tempo. Está cercando seu Alto Pelado, enquanto Paulino Correia não se pode mexer.
Apesar dos afazeres, talvez o Capitão volte, para a missa do galo.
Meu espírito também esteve bastante cheio. Se quisesse fazer uma comparação, diria que meu coração passou por uma lavagem, mas a limpeza não foi completa. Existe ainda algum resíduo que está incomodando. Mas não faço comparação nenhuma. Elas às vezes complicam demais a situação.
De qualquer modo, um propósito já tomei. Vou atirar-me ao trabalho, com vigor. Quando liquidar estes casos mais importantes, irei até Recife. Estou precisando de ares novos. Ou de meus velhos ares, que de certo modo para mim já passaram a ser novos. Tudo depende do modo de encarar os fatos.
Não devo esquecer que o Capitão Cazuza, mesmo atarefado como estava, deu o seu pulinho lá na casa do dentista. O Velho para isso é correto. Deu-me notícia também do automóvel, que chegara nos primeiros dias de janeiro, devendo descer a Viração num carro de boi. De tudo isso soube Cazuza Mamede, que poucas horas passou na cidade.
Soube também – mas essa quem lhe disse fui eu – que o inquérito de Tourão seguira para o juiz, com o pedido de prisão preventiva. Gabriel Soares foi quem fez o relatório, que o delegado Francisco Justino assinou. Bom relatório, sereno, porém enérgico; simples, mas jurídico. Belo chefe, está-me saindo Gabriel.
E agora creio que vou passar alguns dias sem sair. Enquanto não preparar a petição inicial de minha demarcação, não quero mais conversa com ninguém.
É claro, porém, que irei à missa do galo.
Quarta-feira, 26
A noite de natal de onte0ontem foi a mais pitoresca a que já assisti no sertão. Logo cedo, ainda com o sol, começavam a chegar as pessoas do mato, os ‘babecos’, como costumam chamar-lhes os habitantes da cidade, que na verdade são apenas um pouco menos babecos.
Uns ficavam em casas de parentes ou de pessoas amigas. Outros guardavam seus troços nas bodegas onde faziam compras. E uma parte, também numerosa, arranjavam-se pelo meio da rua, passeando acocorando-se pelas calçadas, até a hora da missa.
A cidade ficou cheia de pequenas barracas de folhagem ou empanadas de algodãozinho, de tabuleiros e vendedores ambulantes. O doce seco, os sequilhos de goma e o aluá de milho andavam por toda parte, para não falar na cachaça, que é o complemento indispensável desses ajuntamentos.
Logo à boca da noite a polícia começou a ter trabalho com os bêbados, que eram levados para a cadeia, onde permaneceram, durante o resto da noite, os que não tiveram braço forte para tirá-los.
A cidade parecia uma grande feira noturna. O prefeito mandou acender a iluminação a carbureto, que funcionou com dificuldade, depois de uma explosão, que queimou a cara do fiscal da prefeitura.
No centro da rua da Matriz a banda de música do major Gabriel tocava num coreto improvisado.
Lá para as oito horas, a senhora do telegrafista começou a ensinar as famílias da elite a fazer retreta, passando ao longo da rua, por um lado e outro do coreto. O ensaio teve qualquer coisa de ridículo – perdoem-me as respeitáveis figuras que dele participaram.
A senhora do telegrafista é elegante e simpática. Para aumentar seu prestigio, trouxe da Capital, onde residia, um piano em que executa as músicas da época e lá uma ou outra valsa que já vai ficando esquecida.
Não posso esquecer a cara em que o chefe Gabriel Soares, o Dr. Gouveia, Adriano Pereira e outros figurões da terra ensaiaram as primeiras caminhadas de retreta, de braço com as respectivas consortes. O velho Cazuza, que veio também a missa, recusou-se valentemente a participar da folia. Não o fez por sentimento de ridículo. Alegou que era viúvo e aquilo era diversões para casais. Nem o chefe conseguiu demovê-lo desta vez. Eu ainda pensei com os meus botões – ‘Não tem mulher porque não quer. Quem o mandou andar às voltas com criadinhas?’ mas logo afastei o pensamento importuno. A senhora do telegrafista ainda tentou trazer a filha mais velha do escrivão, para dar o braço a Cazuza Mamede. Mas Josefina correu para o interior da primeira casa que encontrou aberta e não apareceu mais, até o fim da festa. O velho, por sua vez, viu naquilo uma insinuação de mau gosto e largou-se para a casa do vigário, em cuja calçada ficou conversando até a hora da missa.
De todos os ‘retretistas’ pareceu-me que Gabriel era o que tinha mais noção de ridículo. O riso com que ironizava a si mesmo e aos outros foi suficiente para salvá-lo.
O juiz cansou logo na primeira volta. Começou a respirar profundamente pela boca e a queixar-se do coração e do estomago. A mulher ainda insistiu para que ele prosseguisse. Mas era inútil. Ali não se tratava de uma resolução, e sim de uma impossibilidade.
Muito simploriamente, Adriano Pereira aproveitou um tamborete desocupado no coreto, subiu com dificuldade e aí ficou longo tempo, ao lado dos músicos, apreciando a novidade da terra. A senhora do telegrafista, com Dona da festa, não deixou que Dona Nana ficasse triste. Deu o braço à mulher do magistrado e continuou animando a sua invenção.
Os rapazes e as moças, a princípio, só faziam olhar, desejosos e tímidos. Ninguém os convidara. Era certamente um divertimento apenas para os ‘papéis queimados’. Mas, lá para as tantas, vendo que o elemento velho fraquejava, a senhora do telegrafista foi chamando a mocidade. Alguns rapazes mais atirados procuraram dar o braço as moças que cercavam o coreto. A gargalhada foi geral. Aquilo não era baile. Quem não tivesse mulher ou noiva, que passeasse sozinho, ou em grupo do mesmo sexo. O convite ao velho Cazuza, para dar o braço a Josefina, fora um deferência toda especial. Ou uma fina peça da mulher do telegrafista...
Ao tocar a última chamada da missa, a retreta estava generalizada. A brincadeira parece que pegara.
Eu, de minha parte, não tendo mulher, nem noiva, fiquei sem passear. Como previra, minha amada não apareceu na cidade. Desde o incidente da carta, nunca mais saiu. Pretexta o estado de saúde de sua mãe e muito trabalho com as aulas.
Por muito tempo hesitei, se devia ir lá ou não. Afinal, ela desculpou-se, pediu perdão com o rosto molhado de lagrimas. Eu perdoei. Pelo silêncio e por um aperto de mão, mas perdoei, sem indagar nada, sem procurar razões. Só ainda não tivera coragem de voltar até lá.
Finalmente, fui. Fui precisamente quando começava a tocar a última chamada da missa. Na calçada havia várias pessoas. Recordo-me bem do escrivão Florêncio e de sua filha mais moça. Não tive com minha amada qualquer conversa em particular. Não direi que estava alegre, mas ficou satisfeita com a minha presença. Satisfeita e tranquila. Saímos todos para a igreja, que fica bem pertinho. Ela entrou, eu fiquei na porta, donde pude assistir ao ato mais comodamente.
Não a vi mais. Creio que essas reaproximações devem ser mesmo assim. Exigem uma readaptação entre as pessoas, para que os efeitos da crise não voltem a perturbar. É como se tivéssemos de começar de novo.
Noite
O velho Cazuza pediu-me que passasse uns dias na fazenda, se meus trabalhos o permitirem. Os trabalhos permitem, e os amores também. O foro está em férias, se a expressão cabível é esta. As férias estão legalizadas, desta vez. E o amor esta em descanso. Diz a Bíblia que depois da tempestade vem a bonança. Será que depois da bonança vem nova tempestade? É o que não sei. Sei apenas que vou atender ao apelo do Velho. Daqui mesmo ele segue para outra fazenda, que fica ao norte do município. Tem providências urgentes a tomar, sobre o gado e o algodão empaiolado.
Talvez o campo me faça bem. Apesar da época, em que a vegetação está toda escura e os cursos d’água calados, ainda conto com um bom açude para tomar banho e pescar.
Gonçalo ficou na cidade para ir comigo a Timbaúba. O Velho seguiu com Zé André. De acordo com os nossos destinos, ele precisa de uma bagageiro; eu, de um guarda-costas. É o que deve pensar o Capitão.
Cumpramos a sua vontade, se esta for a vontade de Deus.