SERIDÓ E SUA GENTE
Pery Lamartine
Os animais habitantes daquelas ribeiras eram onças,
gatos do mato, raposas, tatus, maritacacas, macacos, tejuaçus e outros animais
menores. Aves, predominavam as pombas (rolinha, asa branca, juriti e arribaçã);
acauãs, seriemas, gaviões, carcarás, urubus e até as emas habitavam também
aquelas ribeiras, além de um grande número de pássaros menores, de cantos
maviosos, tais como o canário da terra, o galo de campina, a graúna, e o
gracioso cancão. Nas aguadas não faltava o tetéu, o furabarreira, o flecha-peixe,
o mergulhão, as garças, a marreca e uma infinidade de outras aves aquáticas.
Aquele sertão sempre foi riquíssimo em aves. O bicho mais perigoso que se tem
notícia eram as cobras; a cascavel com seu veneno mortal, a jararaca cuja
picada não havia cura e cobras que não ofereciam perigo.
Nesse ambiente da caatinga ressequida e vales
verdejantes, dominava o bugre, índios da tribo Tarairiú, mas conhecidos por
Janduís, caçadores por excelência, senhores daquelas ribeiras, até as
nascentes. Tanto os índio, como os animais e os vegetais dessa região, viviam
inteiramente adaptados àquele ambiente hostil. A chegada do homem branco, com o
descobrimento, trouxe para o Seridó um certo desequilíbrio ecológico cujas
consequências ainda hoje permanecem.
O tempo avançava e num dia de março de 1535,
assumia em Pernambuco, o titular daquela Capitania, Sr. Duarte Coelho Pereira.
Aquele cidadão português trazia na sua esteira além dos familiares, “gente nobre e luzida” que pertenciam à
classe dominante de Portugal. Essa informação contradiz com aquela que se
ensina nas nossas escolas de que para o Brasil só vinham degredados, criminosos
e prostitutas. Os colonos instalaram-se com engenhos de açúcar e o que ocorreu
na Capitania, num período relativamente curto, foi uma verdadeira explosão de
desenvolvimento rural e superprodução na indústria açucareira, abarrotando de
açúcar a metrópole e toda Europa, criando uma imensa crise com a Holanda,
tradicional fornecedora do produto. Há quem afirme que a invasão holandesa no
Nordeste foi uma retaliação a este estado de coisas.
A cana de açúcar, embora fosse vitoriosa na zona da
mata de Pernambuco e no vale do Paraíba, cuja atividade muito dependia da
criação de bovinos para atender aos engenhos, como animais de tração ou
fornecer couro para os manufaturados, leite e carne para a população. No
início, a baixa densidade demográfica da região, permitia amplos espaços vazios
entre as propriedades. Na medida em que esses espaços foram sendo ocupados e a
cerca de arame farpado ainda não estava em uso, o gado invadia as áreas
agrícolas, criando atritos entre os vizinhos. Esses atritos iniciais foram se
transformando em conflitos tão frequentes e as queixas eram tantas que o
Governo Real decidiu intervir disciplinando o assunto. Segundo uma publicação
do Ministério da Educação e Cultura de 1959 com o título ‘O PASTOREIO NA FORMAÇÃO DO NORDESTE’ da autoria do Sr. Costa
Porto, vem fornecer valiosas informações que ajudam a compreender o que houve
naquela fase da vida nordestina. O autor informa que uma certa Carta Régia
determinou “... que não se pudesse criar
gados senão a dez léguas além dos limites da área da cana-de-açúcar...”.
Com essa medida, a pecuária foi deslocada para o sertão. O avanço para o
interior foi lento e constante, pois dependia de fatores adversos tais como, os
longos períodos de seca e a pacificação dos índios, que estava em curso,
especificamente aqueles do Rio Grande do Norte que mantinham uma guerra de
extermínio com os brancos. A penetração subiu a Serra da Borborema, onde
surgiram cidades como Campina Grande, Picuí, Esperança, Soledade e seguiu rumo
oeste, deixando os marcos pelo caminho: Santa Luzia, Patos e Pombal (ex-Arraial
do Bom Sucesso de Piancó).
Sobre Pombal há uma estória de tradição oral que
carece de confirmação: conta-se que o chefe da ‘Entrada’ encontrando um local favorável à margem do rio Piancó,
decidiu instalar ali uma base de apoio, batizada com o nome de Arraial do Bom
Sucesso do Piancó. Esse pioneiro cujo nome não identifiquei, tinha problemas com
a justiça em Portugal, daí porque estava vivendo deste lado do oceano. Algum
tempo depois do arraial instalado, chegou pelo correio uma boa nova; a anistia
do pioneiro, assinada em Portugal pelo Marquês de Pombal, em retribuição aos
bons serviços prestados à Coroa, pelo pioneirismo, aqui nas terras brasileiras.
Houve comemorações em regozijo ao fato e o pioneiro mandou trocar o nome do
arraial que passou a ser chamado Marquês de Pombal, permanecendo até hoje,
caindo o Marquês por falta de use. O pioneiro em questão poderá ter sido um dos
irmãos Oliveira Ledo, grandes caçadores de índios e que deixaram muitas
fazendas por todo aquele sertão, tendo sido eles os requerentes da Sesmaria da
ribeira das Espinharas onde, posteriormente, foi implantada a fazenda Serra
Negra, hoje sede do município e o berço das famílias Faria e Mariz.
No avanço para o sertão, no rumo do oeste, os
vaqueiros foram encontrando as nascentes dos rios que correm para dentro do
Seridó e desceram neles, ocupando as terras férteis dos seus vales. A
penetração empurrava o vaqueiro cada vem mais para o interior, à procura de
novos campos de pastagem. A história do Nordeste está cheia desses casos, desde
a conquista da região sanfranciscana até o sul do Piauí, onde alguns dos
antigos seridoenses costumavam se abastecer de gado, para refazer o rebanho de
engorda. Os rastros dos pioneiros poderão ser seguidos através das antigas
fazendas ainda hoje preservadas às margens dos rios seridoenses, onde são
encontrados aquelas casas senhoriais de duas águas, cumeeira alta e longos “telhados de arrasto”, testemunhas da
época do desbravamento da região.
Pode-se dizer que a ocupação do Seridó, foi uma
decorrência dos conflitos ocorridos na zona dos engenhos de Pernambuco ou
Paraíba, já no século XVII, envolvendo os poderosos Senhores de Engenho e os
Criadores de Gado. Por ironia, em alguns casos, aqueles senhores e os criadores
eram as mesmas pessoas.
E que homens eram aqueles, promotores dessa
penetração incontida para o interior do sertão nordestino? Eles representavam
as primeiras gerações de brasileiros, descendentes diretos daquelas famílias
chegadas, “gente nobre e luzida”,
trazidas para Pernambuco por Duarte Coelho. Foram eles os que entraram sertão a
dentro com suas famílias, seus rebanhos e implantaram as fazendas de criar e o
estilo de vida que conhecemos até hoje no Seridó.
As famílias pioneiras que participaram da ocupação
dessa região, durante o Século XVII, são conhecidas e ainda hoje estão lá os
seus descendentes. A escravidão negra pouco participou da formação do Seridó,
pois a atividade econômica praticada exigia reduzida mão de obra. Os casamentos
interfamiliares havidos, tornou o homem seridoense um personagem com tipo
físico definido e linguajar próprio (Câmara Cascudo, no passado, já havia
registrado o linguajar sertanejo que, segundo ele, usa expressões arcaicas, ou
seja, o português no Século XVII. Exp.: “pro
mode", “entonce", “adispois".
Em Portugal, ainda hoje se fala: “vou
sair mais fulano” igual como fala o seridoense do povo). A descendência
lusa e o isolamento apurou mais ainda geneticamente, gerando um homem alto,
feições afiladas, cabelos castanhos claros e em alguns casos loiros, olhos com
tendência a azul (marca do sangue Celta vindo do Norte de Portugal), dono de um
comportamento reservado e grande empreendedor.
Para melhor compreensão vai aqui uma informação a
respeito dos Celtas. Esse povo, indo-germânico, no seu apogeu dominou o norte
da península Ibérica, deixou suas marcas na região do Minho em Portugal e na
vizinha Galícia na Espanha. Do Minho veio a maioria dos imigrantes portugueses
para o Nordeste do Brasil ao tempo de Duarte Coelho em Pernambuco. Daí se
explicar os tipos que nós chamamos ‘galegos’,
muito comuns no Seridó, especificamente no município de Carnaúba dos Dantas:
“Meninas de íris turquesa,
Cabelos algodoais”.
Como disse o poeta modernista natalense Paulo Jorge
Dumaresq, depois de visitar a região.
Juvenal Lamartine de Faria, meu avô, um ilustre
filho da terra, um dia escreveu esta frase que acho própria para este momento. “... as asperezas do clima e as incertezas
do inverno na zona sertaneja do Estado, determinaram a formação de um povo
sóbrio, resistente e tenaz...”. Ele esqueceu apenas a força genética que o
seridoense herdou, vindo do além mar.
Publicado na Revista
Século (Atualidade e Cultura), Ano I, Nº 2, Natal, dezembro/1997, págs.
97-99.