PEDRO AMÉRICO: Cidadão do Brasil,
Pintor do mundo
Herman Lima
Pedro Américo teria
sido talvez o maior pintor do Brasil, como ficou sendo o brasileiríssimo
Almeida Júnior, se o destino retardasse por uns dois ou três lustros pelo menos
a chegada de certos sábios estrangeiros à sua cidadezinha paraibana.
Já o ilustre Gilberto
Freyre, com a sua argúcia de sociólogo, remexedor das raízes abstrusas da nossa
gens, marcou, com incisivo reparo, o
mal que lhe fez à precocidade de nove anos a incumbência técnica de adido
oficial a sisuda comissão cientifica do francês Brunet e do alemão Bindseil: “Ha alguma coisa de menino roubado pelos
ciganos no caso de Pedro Américo, arrancado criança à família e à loja do pai
por dois bruxos europeus em viagem cientifica pelos sertões do Nordeste”.
Tão grande foi o
estigma desse jugo na alma do futuro grande pintor que em toda a sua obra vasta
nenhuma tela, por mais despretensiosa que seja, revela um ímpeto de rebeldia,
um assomo de independência artística, uma explosão desaforada do ‘eu’, que
lembrasse de longe sequer o filho dos matutos nordestinos, de infância embalada
ao som das modinhas sertanejas, das toadas dos aboios e do zumbido mole dos
desafios. “É* o que mais falta, a meu ver, à alma e à vida de Pedro Américo:
alegria, inquietação, adolescência”.
Cá dê nunca mais,
em quase meia centena de quadros de tanto assunto variado, a mão do menino
arteiro que espantava os patrícios de pé no chão, rabiscando a carantonha do
famoso frei Serafim ou traçava na parede caiada de casa um galo madrugador que
só faltava cantar para ser de verdade? Que foi que fizeram do meninozinho
pensativo, de carinha redonda e olhos coruscantes, como está no estupendo
autorretrato dos seus onze anos? Onde se meteu mesmo o rapagão que poderia ter
sido ele, varejador das caatingas atrás do boi fujão, serenatista de voz
saudosa para sacudir o coração das caboclas da beira da estrada, bonitão e
desempenado, com aqueles bigodes torcidos que Deus lhe deu, tão bom “para bater
o barro socado das casinhas de taipa, no furdunço do fandango, com aqueles pés
viajeiros que iriam uma vez, por desfastio, de Paris ao condado de Baden?
Quando o pequenino
desenhista da comissão Brunet tivesse
seus vinte anos bem puxados, o corpo mordido pelo sol das várzeas nordestinas,
duro do chouto dos cavalos de campo e das labutas do plantio, o ouvido remoendo
como um busio o farfalho da mata e a cantilena do ribeirão que desce da serra,
o olfato bem vivo para o cheiro dos engenhos e das madrugadas no curral
(estrume novo e leite espumando na caneca de flandres), o gosto de todas as
frutas da mata na língua, caju, cajá, ubaia, mangaba, e água de coco da
baixada, misturada de sol e de luar fresquinho da boca da noite, os olhos
ardendo de tanto azul, de tanta estrela, de tanto verde de folharedo e de mar
bravo — e as mãos, os olhos, a boca, o olfato, o ouvido embebedados de todos os
dengues da cabocla que se desfolha no samba ou nas águas do rio como ninfeia -
então, sim, poderia enterrar-se nas aulas graves da imperial Escola de Belas
Artes, poderia meter-se anos e anos nos salões dos museus de Florença e de
Paris, sem risco mais de deixar por lá o umbigo, como deixou, desenraizado da
paisagem natal, alheio para sempre ás coisas e ás gentes de sua terra, estranho
entre os seus, a ponto de escrever aos 21 anos a seu amigo Victor Meirelles
estas linhas desconsoladoras:
“Minha natureza é outra; não creio dobrar-me com
facilidade ás exigências passageiras dos costumes de cada época, que também são
uma das fontes em que um talento como o seu pode achar pérolas, A minha paixão
so a historia sagrada sacia-a”.
Não há porém por que culpar em demasia a este
jovem de múltiplos rumos, simultaneamente panfletário, homem de gabinete, autor
duma “Hipótese relativa à causa do
fenômeno chamado luz zodiacal”, duma “Memória
sobre a conjugação do Spirogira Quinino”,
duma obra didática sobre o ensino livre das ciências naturais e duma
refutação à Vida de Jesus, de Renan, político e romancista, além de adjunto a
universidades europeias por via de ruidosos concursos, professor de belas artes
no Brasil, pintor da Bíblia, pintor de batalhas.
Seu mal vinha em
linha reta do oficialismo de seus primórdios artísticos, do ferrete técnico a
que o cingira a malfada a expedição a que deveu a gloria e o martírio. Vinha de
mais complexas raízes ainda, pois era apenas o mal do homem do século XIX,
devorado de cientificismo e de angustia intelectual, de alma ‘perpetuamente inquieta’, como lembra
Henri Focillon: “Une tristesse l’obsède. Elle lui donne le nom
de cet âge même - le mal du siécle - mélancolie non pas sèche ou malsaine, mais
ivresse créatrice aussi. Toute mesure lui est étroile; sans cesse elle tend à
illimité; le héros qu’elle s'est fait, le ‘penscur’, n’est pas l’homme qui
raisonne, mais le rêveur et le voyant”.
Perdido em pleno
romantismo francês, ao contato dos grandes nomes que foram os últimos lampejos
da escola e da época, ao jeito de Ingres e de Flandrin, Pedro Américo
engolfava-se no mesmo desígnio funesto dos pre-rafaelistas ingleses,
encharcados de teorias e de princípios, poetas e ensaístas acima de tudo,
egressos do momento, que premeditadamente fugiam ao cotidiano, para a vida
convencional de eras artisticamente exaustas, vindo daí toda essa prodigiosa
serie de frígidas academias em que o seu gênio artístico se dispersou,
prodigamente, toda essa galeria de episódios anedóticos e literários,
brilhantes sem duvida muita vez, mas desprovidos de seiva atual, carentes de
emoção - desvitaminados, como diria um critico rebarbativo de hoje - em vez de
florir numa obra espontânea e impulsiva, que o teria levado ao mais alto cimo
da arte brasileira, porque animada de verdade e de vida.
Desenhista
prodigioso, a que falta apenas, como pintor, um certo dom de consistência e de
volume no modelado dos nus femininos - capaz de ser o nosso maior pintor de
batalhas, sem que se preocupasse, em absoluto, com o gênero, a levarmos em
conta suas próprias, palavras citadas antes, era Pedro Américo acima de tudo um
estupendo colorista, nutrido dos melhores ensinamentos da escola veneziana,
como acentuava a propósito de Carioca o admirável Gonzaga Duque: “A cor é o seu
tour de souplesse.
O pintor coadjuva
especialmente o desenhista. A tinta é o seu segredo, é o poder criador das suas
obras. É uma prodigiosa boceta de Pandora, essa palheta brilhante e opulenta.
Assim o esboço, a figura, tal como ela se apresenta na sua imaginação, dá-lhe o
movimento próprio, e depois reanima-a, isto é dá-lhe cor. Não é uma cor
convencional, preparada, premeditada, escolhida, não; é a cor de que ela
precisa para viver, que ela deve ter para mover-se”.
No entanto, quando
quer ser grandioso, como em Judite e Holofernes, é apenas declamatório. Quando
intenta transmitir o êxtase da pastorinha de Domrerny, é somente um esgar de
espanto figé numa máscara de modelo
que se perpetua na tela. Tudo isso porquê? Porque, homem sem imaginação despresando
a pintura como expressão pura, como fixação do ‘momento’ de eternidade que há
na vida e na coisa mais simples, seja na nonchalance
do ‘Caipira picando fumo’, de Almeida
Júnior, no jeitinho de gazela da Gioventú
de Visconti, ou no fabuloso ‘Boi escorchado’
de Rembrandt, Pedro Américo recorria ao puramente episódico da historia ou da
literatura, dele podendo-se dizer perfeitamente o que dos mesmos pre-rafaelitas
disse o grande crítico de arte inglês, Clibe Bell: “ask en admirer of their pictures to tell you exactly what he finds in
one oj them, and you will notice that all he has to say might just as well be
said of a book”.
Ora, pintura e
literatura não se interpenetram. Pintura que pretende apenas contar é pintura
falsa. Sua mensagem, por mais pura e sincera nas intenções, falhou por
conseguinte por um erro de origem e principalmente de data, pois, entre David e
Cézanne, o nosso insigne compatriota preferiu ficar com o romantismo, esquecido
de que “a época termina, o mundo
continua”.
Todavia, que
extraordinário pintor não foi o autor daquele turbilhão de cavalos e
guerreiros, de fumo e sangue da Batalha de Avaí ou dessa maravilhosa trilogia
de retratos - Almeida Reis, Fagundes Varela e o autorretrato da coleção Cardoso
de Oliveira - nos quais volta a ser ele mesmo, sem premeditação, sem
calculismos, sem preparo, capaz de inquietações e de ímpetos adolescentes, como
o pequenino rabiscador da longínqua Areia - capaz de novo de pintar com ‘‘seu sangue”, para seguir o conceito
universal a que alude Wollf.
FONTE:
Revista da Semana, Ano XLIV, nº 17, Rio de
Janeiro, edição de 24 de abril de 1943, pág. 3.