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domingo, 25 de dezembro de 2011

VITTORIA COLONNA

A MUSA DE MICHELANGELO



José Ozildo dos Santos

I
nteligência marcante, Vittoria Colonna foi uma das maiores expressões da poesia da Itália do século XVI, ocupando ainda hoje um lugar de destaque no quadro da poesia feminina daquele país. Considerada a escritora mais renomada e bem sucedida de sua época, ela foi amplamente admirada por seus pares e sua produção literária passou por várias edições ainda no século XVI, demonstrando a sua vanguarda na produção literária das mulheres, na Renascença.

Esplêndido retrato de Vittoria Colonna, pintado
por Sebastiano del Piombo, em 1520

Vittoria Colonna nasceu em Marino, Itália, em abril de 1490 (algumas fontes trazem 1492). Filha de Fabrízio Colonna (senhor de vários feudos e condestável do reino de Nápoles) e de Agnesina di Montefeltro, era neta de Federigo da Montefeltro, o primeiro duque de Urbino, e, também sobrinha dos Duques de Urbino, Guidubaldo Montefeltro e Gonzaga Elisabetta, figuras emblemáticas no 'Cortegiano Baldassarre Castiglione', a obra prima literária da cultura cortês italiana.
Era ainda adolescente - quando numa manobra política que estabeleceu uma aliança entre os Colonna e o trono espanhol do rei Fernando D'Aragona - foi prometida em casamento a Francesco Ferrante D'Avalos, nobre napolitano de origem espanhola, que mais tarde tornou-se um dos principais generais do Imperador Carlos V, tendo sido condecorado por suas várias vitórias.
O referido casamento ocorreu no dia 27 de dezembro de 1509, no Castelo de Aragonês, na Ilha de Ischia, contando com a presença das melhores famílias da nobreza napolitana. Logo em seguida ao casamento, Francesco Ferrante recebeu o título de Marquês de Pescara. E, deixando a jovem noiva na responsabilidade do pai Fabrizio Colonna, seguiu para lutar sob a bandeira espanhola na guerra contra Fernando, o Católico, rei da França.


Vittoria Colonna, por Sebastiano del Piombo,
cerca de 1520

Quase esquecida pelo marido, que ansiava mais a fama do que o seu amor, Vittoria descreve sua dor em uma carta para Pescara, escrita em rima, contendo 37 estrofes. Guardada nos arquivo da família, esta carta, escrita três anos após o casamento, somente veio a público, em 1840, quando Visconti acrescentou-a a outros poemas em sua edição revista dos escritos de Vittoria. A referida carta começa assim:

Eccelso Mio Signor! Questa ti scrivo
Per te narrar tra quante dubbie voglie,
Fra quanti aspri martir, dogliosa io vivo!"

Com esses versos, Colonna conclui sua triste carta:

"Tu, vivi lieto, e non hai doglia alcuna:
Che pensando di fama il nuovo acquisto,
Non curi farmi del tuo amor digiuna.
Ma, io, con volto disdegnoso e tristo,
Serbo il tuo letto abbandonato e solo,
Tenendo con la speme il dolor misto,
col vostro gioir tempro il mio duolo!"

Em Ischia, esquecida pelo marido, Vittoria viveu martírios amargos e dias triste. E, enquanto seu marido lutava para adquirir fama, ela vivem 'seu jejum de amor', como narra em sua carta íntima, misturando dor e esperanças.
Com brilho, o Marquês de Pescara participou da Batalha de Pavia, na qual saiu gravemente ferido. Durante sua recuperação, ocorreu algo que deixou-lhe insatisfeito com Carlos V, tendo sido sondado por Morone, o antigo ministro dos Sforza, para participar de uma conspiração idealizada por outros príncipes italianos, sendo-lhe prometido o reino de Nápoles como recompensa por sua ajuda na execução do enredo.

Vittoria Colonna, frontispício do livro 'Rime e lettere' (1860)

No entanto, o plano chegou ao conhecimento do Imperador, que designou-o para prender o próprio Morone. Relata a história, que Vittoria Colonna fez protestos nesta ocasião, na esperança de manter o marido dentro dos limites de sua lealdade ao Imperador, mas não foi ouvida.
Entretanto, os ferimentos que recebidos na batalha de Pavia fizeram declinar a saúde do ilustre comandante "e no decorrer do ano 1525 ele se afundou sob as suas consequências, deixando para trás lhe um nome, juntamente com a mais alta reputação militar", falecendo aos 36 anos de idade.

Vittoria Colonna, vista por Michelangelo

Vittoria era apaixonada pelo marido e chorou a sua morte em poemas considerados admiráveis. E, durante sete anos, desistiu de todo, tendo, inclusive, sido pressionada a aceitar uma das muitas ofertas de casamento, que recebeu.
Viúva e rica, passou a dedicar-se inteiramente à religião e à literatura, sendo frequentemente encontrada em vários mosteiros, tanto em Roma quanto em Viterbo, embora possuísse residência em Ischia e em Nápoles. Sua dedicação à poesia sagrada, fez projetar uma peregrinação a Jerusalém, mas o marquês Del Vasto, primo e herdeiro de seu falecido marido, opôs-se ao seu plano.

Vittoria Colonna, Retrato de Muziano

Contudo, deixando Nápoles, Vittoria Colonna realizou uma excursão pelo norte da Itália, tendo visitado Lucca e Ferrara. E, posteriormente, fixou residência definitiva em Roma, onde, em pouco tempo, tornou-se o centro de tudo o que era mais nobre na vida intelectual e espiritual de seu tempo.
Possuidora um gênio peculiar para a amizade, manteve laços de amizades com grandes nomes da intelectualidade de sua época, a exemplo de Ghiberti, Contarini, Morone Giovanni e um grande grupo de homens e mulheres, que trabalhavam em prol de uma reforma interna na Igreja.
Embora tivesse um grande número de admiradores fervorosos, entre os quais, destacava-se o cardeal Pietro Bembo, o ditador literatura da época, Vittoria Colona voltou sua atenção para o mestre veneziano Michelangelo, protagonista da reforma religiosa que gravitava em torno Cardeal Reginald Pole. E, muitas vezes deixou lugares, a exemplo de Viterbo e outros, onde tinha ido para o lazer ou para passar o verão, e vinha  à Roma, apenas para o propósito de ver Michelangelo, tornando-se o romance de sua vida.


Vittoria Colonna, Retrato de Maria Bandini Buti

Para alguns biográfos, sua relação com Michelangelo não ultrapassou as raias do amor platônico. Ela própria definiu os seus contatos com o grande artista como sendo "amizade estável e firmíssimo afeto"
Contudo, Vittoria Colonna tornou o amor possível na vida de Michelangelo. E ninguém melhor do que Teófilo Braga viu isto quando em 1870, assim afirmou:

Vittoria Colonna! que alma para dal-a a tamanho artista, Vuom di quatralme. Como a poetisa saberia inspirar o poeta, arrebatar com a melancholia de sua saudade o pintor, dar a vida toda ao estatuario para animar o marmore, revelar as perfeições da linha ao architecto! Vittoria Colonna fala de amor como Dyotima, a estrangeira de Mantinea abrasada pelo sol do christianismo. Os seus sonetos são um dialogo apaixonado de Platão; Miguelangelo deixa-se vencer, como aquelle poeta da antiguidade que se deixara vencer também por Corina. Ella possue-se do amor do céo, foge-lhe na suspensão de um extasis amoroso. O artista ao vêr passar o saimento d'aquella por quem fora poeta, resumiu todo o seu amor na vaga aspiração d'estas palavras: "Não ter eu beijado aquella bocca".

Ascanio Condivi, em sua 'Vita di Michelagnolo Buonarroti', publicada inicialmente em 1553, focalizou a relação que se desenvolveu entre Michelangelo e Vittoria Colonna, no final da década de 1530 e início de 1540, período, que coincidiu com a fase difícil da vida daquele grande artista, envolvendo a execução do 'Juízo Final' e os resultados atormentados da longa história do monumento fúnebre para o Papa Júlio II.
Acredita-se que foi o diálogo privado e intelectual entre aquele grande artista e Vittoria Colonna, deu-se no período em que Michelangelo realizou a mais extraordinária de suas obras sacras. E é também provável que o primeiro encontro entre os dois tenha ocorrido em idos de 1537. No entanto, a referida relação somente se estreitou por volta do ano de 1542, quando Colonna era viúva há dezessete anos e Michelangelo, um homem maduro.

Vittoria Colonna, representando a Virgem Maria,
num retrato de Michelangelo

Suas conversas giravam em torno da arte e da religião. Mas, Michelangelo fez da Marquesa de Pescara a sua musa, tendo escrito para ela várias poesias e produzido alguns desenhos. Em resposta, Vittoria dedicou-lhe uma série de poemas.
Num livro publicado por Walter Pater e Donald L Hill, em 1980, sob o título 'The Renaissance: Studies in Art and Poetry', os referidos autores compararam a relação entre Michelangelo e Vittoria Colonna, à experiência vivida por Dante e Beatriz.
Outro renomado biógrafo, que teceu comentário em torno dessa relação, foi Abigail Brundin (Vittoria Colonna, University of Chicago Library, 2005), afirmando que as poesias dedicadas por Vittoria ao ilustre amigo, "revelam um esforço de lidar com a responsabilidade pela sua vida interior e de compartilhar os frutos do labor no espírito de uma comunhão evangélica com alguém que passava pelas mesmas dúvidas e agitações de alma".
Ainda na decada de 1530, Michelangelo deu para Vittoria três desenhos excepcionalmente famoso: 'a crucificação com Cristo vivo' (agora perdido, mas conhecido a partir do belos desenhos preparatórios proveniente do Museu Britânico e do Louvre), a 'Pietá' (uma reflexão sobre a figura de Cristo que mais uma vez se conecta com um dos aspectos cruciais do diálogo entre o artista e Vittoria), e o 'Cristo e a Samaritana', sobre o qual se chegou até a atualidade um estudo parcial, escrito por Michelangelo.
Os primeiros anos da década de 1530 testemunharam o surgimento de Vittoria Colonna na cena literária italiana, sendo  consagrada por Ariosto em seu livro 'Orlando Furioso', publicado inicialmente em 1532.
Ao longo de sua carreira como poeta, Colonna escreveu 352 sonetos. Suas poesias, louvadas como impecáveis na época, fizeram dela a mais importante das continuadoras da tradição de Petrarca, em sua geração.
Espírito talentoso, a Marquesa de Pescara além de mediadora política respeitada, era uma reformadora religiosa. Em vida, teve seus méritos amplamente reconhecidos. Entretanto, de forma indevida e maldosa, a historiografia posterior a retratou não como uma mulher de talentos múltiplos, mais como uma figura passiva, vivendo à sombra de grandes homens, com os quais compartilhou amizade e trabalhos, a exemplo de Michelangelo, conforme observa Abigail Brundin, em seu livro 'Vittoria Colonna and the spiritual poetics of the Italian Reformation'.
Espiritualista, defendendo sua capacidade de escrever sobre assuntos religiosas, Vittoria Colonna afirma em seu versos que "A poesia da oração e da fé revela/que as pessoas desejam fazer profundamente/sacrifícios abnegados e este anseio/é esculpido no núcleo do coração".
A Marquesa de Pescara atribuía uma grande significado à figura evangélica de Maria Madalena. E isto vem à luz em várias de suas iniciativas pessoas, entre as quais destaca-se a fundação, em Roma, de um refúgio para prostitutas.
Vittoria Colonna faleceu em Roma, no dia 25 de fevereiro de 1547. Ao seu lado, até os últimos momentos, Michelangelo esteve presente. Narra a história que ela morreu em seus braços e que ele, em lágrimas, beijava suas mãos sem cessar.

Michelangelo ao lado do leito de Vittoria Colonna

Conta Ascanio Condivi, que foi um dos primeiros biógrafos de Michelangelo, e, também seu discípulo em Roma, que o grande artista após a morte de sua musa, "passou um longo período transtornado, como se tivesse perdido a razão", mostrando-se arrependido por não tê-la beijado nos lábios. E, num de seus mais belos sonetos, Michelangelo "expressou sua tristeza e revolta, e disse que jamais a natureza fizera face tão bela".
Inteligência ímpar, Vittoria Colonna ainda na década de 1530, quando já era um nome reconhecido na literatura italiana, passou a participar das polêmicas em torno da justificação pela fé. No entanto, graças à sua amizade com o cardeal Reginald Pole - a quem declarou que devia a sua salvação - escapou das perseguições impostas pela Igreja Católica, não sendo acusada de ortodoxa.
Conta-se que seu último desejo era ser sepultada no Convento de Santana de Funari, em Roma. No entanto, o local exato onde repousam seus restos mortais é duvidoso. Acredita-se que tenham sido removidos para o cemitério de San Domenico, em Nápoles, onde repousam ao lado do Marquês de Pescara.
A verdade é que Vittoria Colonna foi maior como uma personalidade do que como poeta. Seu livro 'Rime', publicado em Bergamo, no ano de 1512, é essencialmente dedicado à glorificação do seu marido, o jovem Marquês de Pescara. E, para alguns críticos da literatura, é um tanto monótono.
Anos mais tarde, sua poesia tornou-se profundamente religiosa. Em seu poema 'Trionfo di Cristo', é possível perceber a forte influência de Dante e Savonarola, bem como de Petrarca. Além de inúmeros sonetos, também foi preservado de sua autoria uma meditação em prosa sobre a 'Paixão de Cristo'.
Considerada uma das mulheres mais notáveis da Itália quinhentista, Vittoria Colonna publicou: Cartas (Florença, 1532), 'Rime' (Bergamo, 1512), 'Correspondência' (Londres, 1523). Posteriormente, estes livros foram reunidos em único volume, sob o título 'Rimas e cartas'.
Figura da maior grandeza na literatura italiana, Vittoria Colonna foi uma mulher quase divina. Sua beleza, seu talento e sua virtude, foram exaltados por seus contemporâneos. Em sua época, seu nome era sempre acompanhado por elogios brilhantes e expressões de respeito sincero, pois em vida ela foi 'um modelo de matrona italiana'.


BIBLIOGRAFIA

BRAGA, Theophilo. Estudos da Edade Media: Philosophia da litteratura. Porto: Livraria Internacional, 1870.

BRUNDIN, Abigail. Vittoria Colonna (1490-1547). Chicago, USA: University of Chicago Library, 2005.

______.  Vittoria Colonna and the spiritual poetics of the Italian Reformation. Burlington, USA: Ashgate Publishing, Ltd., 2008.

CONDIVI, Ascanio. Vita di Michelagnolo Buonarroti pittore scultore architetto e gentiluomo fiorentino. Seconda edizione. Firenze: Caetano Albizzin, 1746.

MONTGOMERY, James; SHELLEY, Mary Wollstonecraft. The cabinet cyblopedia: Eminent Literary and Scientific Men of Italy, Spain, and Portugal. London: Longman, Rees, Orme, Brown, Green, & Longman, 1835.

PATER, Walter; HILL, Donald L. (ed). The Renaissance: Studies in art and poetry. Ewing, USA: University of California Press, 1980.

ROSCOE, Henry. Vittoria Colonna: her life and poems. London: Macmillan and co., 1868.

SERVADIO, Gaia. Renaissance woman. New York, USA: I. B. Tauris, 2005.

SOCIETY FOR THE DIFFUSION OF USEFUL KNOWLEDGE (Great Britain). The penny cyclopaedia. Londres: C. Knight, 1837. Volumes 7-8.

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